688 DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
E o seguinte:
Projecto de lei
Senhores. - Não se avalia a civilisação de um povo sómente pela natureza das suas instituições políticas, pelo maior ou menor adiantamento da sua industria, pelo numero e perfeição de seus melhoramentos; patenteia-se e aquilata-se ella tambem e principalmente pela qualidade da sua índole, pelo estado dos seus costumes, e ate pela preferencia que elle dá a certos espectáculos e divertimentos. O povo portuguez estremado entre todos os povos do mundo pela elevação do seu caracter e lenidade de seus instinctos, mantém ainda a barbara e condemnada usança das corridas de touros que, sobre não abonar o seu nome, desconvem altamente a quem como elle prezou sempre tanto os honrados fóros de nação christã e civilisada.
Lutar com animaes bravos, maltrata-los e feri-los com traças ardilosas ou com destemida temeridade, mas por gosto e sem necessidade, é cousa repugnante e deplorável e que a moral não auctorisa, e que muito dóc a corações generosos. Semilhantes espectaculos não amenizam os instinctos, nem alevantam o nivel moral de um povo, bem ao revez d'isto só servem para obdurar os ânimos, tolhendo os progressos da sua moralidade e empanando com uma nodoa os brilhos da actual civilização.
Movido de taes e tão poderosas considerações, tenho a honra de apresentar vos o seguinte projecto de lei:
Artigo 1.º São prohibidas as corridas de touros no continente do reino e nas ilhas adjacentes.
Art. 2.º Fica revogada toda a legislação em contrario. Sala das segues, em 5 de julho de 1869. = Joaquim Alves Matheus = José de Aguilar = Antonio Pereira da Silva = Augusto da Cunha Eça e Costa = João Carlos de Assis Pereira de Mello = Fernando Augusto de Andrade Pimentel e Mello = Henrique Barros Gomes = António Joaquim da Veiga Barreira José Dionysio de Mello e Faro = Barão da Ribeira de Pena = Henrique de Macedo Pereira Continha = Jose Augusto Correia de Barros = Francisco Pinto Beata = Luiz Vicente d'Affonseca Henrique Cabral de Noronha e Menezes = Filippe José Vieira = José Luiz Vieira de Sá Júnior = Joaquim Nogueira Soares Vieira.
Permittam-me v. exa. e a camará, que eu exponha summariamente os motivos que me determinaram a trazer aqui este projecto de lei. Na antemanhã do dia 4 d'este mez acordou sobressaltada a parte da capital, denominada baixa, com uns rumores estrepitosos, e com uma grita decompassada, que, estrondeando aos ouvidos da população, lhe cortou o somno e causou anciedades. Foi origem d'isto uma manada de touros bravos, que vindo escoltada do numeroso, festivo e tumultuario préstito do estylo, se tresmalhou, correndo á toa pelas ruas da cidade no meio de grande contusão e de clamoroso alarido. Signalaram o facto duas desgraças lastimáveis-a morte de uma pobre mulher e a de um guarda civil. Houve alem d'isto muitos ferimentos e contusões, muitos sobresaltos e sustos. Esteve em risco a vida de muitos transeuntes. Deploro deveras taes suecessos, Sr. presidente; se a Europa soubesse que uma manada de touros andou á solta pelas ruas de Lisboa, escornando enfuriadamente as esquinas e matando gente, havia de frechar-nos talvez com um sarcasmo cruel, mas não inteiramente descabido; havia de dizer que nós, em vez de lutarmos com o monstro do deficit, para lhe quebrarmos as presas, e o descabeçarmos com destimidez e esforço, andavamos lutando com a ferocidade de animaes indomitos, para nos divertirmos (apoiados). Observo, Sr. presidente, que não obstante a vigilância e as precauções da auctoridade, e as providencias mais ou menos acertadas, que ella toma para evitar discommodos e desgraças, como as que ha pouco succederam, ellas se repetem com frequência (apoiados).
Entendo que o melhor meio de atalhar-se o mal de taes effeitos, é supprimir-se o mal da causa, e acabarem de uma vez para sempre as corridas de touros (apoiados), que bem longe de abonarem o nosso nome, o abatem e deslustram no conceito dos estrangeiros (apoiados).
Um dos jornaes mais lidos d'esta capital apresentou ha dias o alvitre de construir-se uma praça fóra da linha da circumvalação de Lisboa; a mim parece-me, Sr. presidente, que nós resolvemos a questão de maneira mais peremptória, mais decisiva e mais digna, prohibindo dentro e fóra do povoado praças em que se dêem semilhantes espectáculos (apoiados).
Tive sempre por taes divertimentos repugnância profunda e invencivel.
Não me caío mais da memória um facto succedido em Coimbra, quando eu frequentava a universidade.
Arrastado por alguns camaradas de estudo, tive a infelicidade de assistir a uma tourada. Mui de proposito disse infelicidade, porque vim de lá maguado por ver um homem, que sobre a desdita de quebrar uma perna, ficou com a cabeça amolgada. Protestei arrependimento e assentei mui determinadamente não voltar. Fica a gente com uma cousa de mais e com outra cousa de menos; a cousa de mais é a tristeza no coração, a cousa de menos é dinheiro fóra do bolso, porque em taes lances tem-se como ponto obrigatório para as pessoas de brio darem esmola ao infeliz, que foi victima do boléo, para me servir da technologia tauromachica.
Reputo as touradas um legado bárbaro de uma civilisação pagã (apoiados), que, sem embargo do haver attingido os mais levantados grãos de esplendor, viveu lardeada sempre de perversões e cruezas, hoje repulsivas ao nosso senso moral e á nossa rasão allumiada pelas doutrinas a um tempo austeras e suaves da civilização christã.
Esse antigo povo romano, que tanto Re desvanecia do ser o mais policiado do mundo pela sabedoria das suas leis, pela superioridade dos seus costumes e pelas elegância da sua litteratura, levantou, como v. exa. e a camará sabem, esse grande monumento chamado Coliseo, aonde se festejava uma grande barbaridade (apoiados); tinha espetaculos de gladiadores, em que o jorrar do sangue, o lacerar das carnes, e o arquejar dos moribundos eram para o patriciado mais illustre um objecto e um motivo de recreação, e em que as matronas da primeira jerarchia e da mais alta educação cobriam com uma tempestade de frenéticos applausos a féra que despedaçava o homem, e atiravam um chuveiro de vaias insultuosa ao homem que triumphava da fera.
Ao lado do circo ensanguentado estava o torpe prostíbulo (O Sr. Falcão da Fonseca: - Apoiado); o gladíador saltava dos braços do vicio para as garras do tigre; os dois mysterios mais graves da humanidade, - a vida e a morteeram, como diz um grande escriptor, solemnemente enxovalhadas perante as turbas envilecidas, que, havendo perdido a memória da liberdade e ajoelhando submissas aos pés dos Néros e dos Caligulas, se mostravam satisfeitas e felizes, porque tinham pão e jogos (apoiados). O circo e o ergastulo consubstanciavam em dualidade horrível todas em iniquidades, todas as miserias, e todas as abjecções das antigas sociedades.
O Ave Cesar morituri te salutant era o transumpto fidelissimo dos costumes depravados do povo rei (apoiados); era a legenda tristíssima, que negrejava estampada na face de uma civilisação, que, para ser incomparavel, só lhe faltou o ser bem morigerada. (Apoiados. - Vozes: - Muito bem) São as touradas um vestigio e uma reminiscência d'essas barbaras usanças e d'esses maus costumes (apoiados). Esse vestígio, não obstante a sua fórma mais humana e menos cruenta, não ha rasão nenhuma que o justifique (O Sr, Affonseca: - Apoiado), pois encontra todos os principios e todos os sentimentos proprios de um povo christão e civilisado. Não vemos hoje gladiadores, que lutem com leões e sacrifiquem a vida em holocausto ao gosto derrancado, e aos prazeres immoraes de um povo; uras vemos bandarilheiros e moços de forcado, que farpeiam e pegam a um boi (riso) com esforço e com galhardia, mas ás vezes com perigo e