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1020 DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

desfortunios, exhibam ahi o paiz, tripudiando sobre as suas desgraças na apparencia desoladora de quem vive d'ellas inconsciente, e annunciem tudo isto com a pompa do numerosos convites distribuidos profusamente entre nacionaes e estrangeiros, e diga-me depois v. exa. com toda a sinceridade do seu bondosissimo coração se o paiz não lhe recorda em tal caso o monstro que em breves palavras lhe descrer, mostrado como elle n'uma feira, como elle tentando fazer rir e folgar os que a frequentem, como elle tentando enriquecer os que a exploram, mas só conseguindo como elle acordar na alma dos que o vêem a commiseração, o tedio e o desgosto!

Vozes: - Muito bem.

Não sei se isto é duro para alguem, seja para quem for. Mas não posso deixar de o dizer porque me seria impossivel callar a voz da verdade, a qual contra todas as imposições de silencio involuntariamente me irrompe dos labios.

Nós estamos vendo a cada momento demonstrações verdadeiramente tragicas de miseria.

Não ha muitos dias, recolhendo a minha casa a uma hora avançada da noite, porto das duas horas, ouvi atrás de mim vozes de creanças, que os seus passos não, porque caminnavam descalças.

Voltei-me e vi-as: eram duas, cuja idade seria quando muito de cinco a seis annos, parecendo-me que seriam irmão e irmã. Vinham sósinhas áquella hora da noite e cobriam-lhe os pequeninos corpos alguns andrajos.

Perguntei-lhes de onde vinham: «Da Baixa» me disseeram ellas. O que tinham andado a fazer: «A pedir esmol» acrescentaram soluçando.

Este espectaculo de miseria presenceado por mim a horas mortas, quando os filhos dos ricos dormiam nos seus berços e as aves nos seus ninhos; aquella tragica revelação da desgraça que logo ao alvorecer da existencia, para uns de confortos rosas, para outros de miserias e dor, empolgára aquellas duas infelizes, desprotegidas creanças, que melhor fôra talvez que a morte levasse, se a vida tem de correr-lhes como á entrada n'ella se lhes annuncia; e a par d'isto a consciencia desoladora da minha impossibilidade de valer-lhes, salvando-as da garra implacavel do infortunio, que parece ter-se já irremediavelmente apoderado dos seus destinos, impressionaram-me tão inteiramente, tão vivamente, que posso com inteira verdade assegurar a v. exa. e á camara que, ao entrar em minha casa, de onde tambem a alegria anda afastada ha muito, levava ainda diante da vista o quadro de miseria que pouco antes viro, e no coração o travo amargo que ali se me filtrára.

Sr. presidente, eu que tenho filhos, pouco mais ou menos da idade das creanças que tão abandonadas encontrara, sentia então um estranho aggravamento na preoccupação constante que me domina ácerca do que será o seu futura, n'este pobre paiz, onde a todos elle se antolha tão incerto, e consinta-me v. exa. que, n'um impulso de sinceridade que não sei vencer, lhe confesse que, n'essa noite, antes de recolher ao meu quarto, não prescindi de os ver, e, ao estreital-os contra o meu coração ternissimo de pae que muito lhes quer, senti que tinha os olhos rasos de lagrimas. (Sensação.)

Sr. presidente, vão sendo frequentes os dias em que os jornaes nos dão a noticia de que nos ruas, aqui e alem, foram encontrados individuos, se não mortos pelo menos prostrados em accessos agudos de fome, a que sobreviria a morte se a caridade os não soccorresse de prompto.

Estes factos, que outr'ora se não davam, repetem se agora com uma insistencia estranha; e é no meio de tanta desventura que se pensa e cuida em realisar festas, que pelo seu luzimento serão por certo uma nova opportunidade para a exhibição dos felizes, mas por isso mesmo serão maior ultrage para a miseria dos desgraçados, que tantos são!

Que singular insania a nossa! Tamanha, que quem ignorar o que de miseria vae cá por dentro, é só reparar na leveza de animo com que nos preparâmos para as festas de ámanhã, nós que não sabemos como pagar aos credores que nos batem á porta com sinistras ameaças, cuidará por certo que este paiz floresce n'uma quadra prospera como outra ainda não teve!

Nunca a miseria foi tamanha nos espiritos, nunca a carne humana soffreu tão dolorosas angustias de fome e desconforto, como agora; nunca a desgraça attingiu a nossos olhos tão tragicas revelações como aquellas que a cada momento se nos deparam pelas das d'essa cidade; e, para curar tantos males como estes de que a sociedade portugueza enferma, que fazer? celebrações pomposas e caras de um centenario!

As desgraças são tantas, o mal estar de todos é tão visivel, tão completo o desalento que nos invade as almas, tão escura e tão negra a perspectiva do futuro, n'esta quadra aliás chamada de progresso e civilisação, factos de que eu duvido, porque não creio em progresso e civilisação emquanto vir que irmãos nossos cáem nas das prostrados pela fome, que realmente, sr. presidente, muito custa a crer que haja quem tenha a coragem cruel de esquecer tantas desgraças, tantas calamidades, para arremessar aos olhos dos que soffrem, como se fôra esponja que lhes embebesse as lagrimas, essa irrisão das festas do centenario! (Apoiados.)

Sr. presidente, pobre como está, este paiz não póde com festas. Esforcem-se os homens publicos por lhe melhorar a situação, se podem e sabem, por meio de leis sabias e de medidas bem inspiradas, e que uma d'estas seja prohibição immediata das festas que se projectam.

Tome o governo essa resolução e verá como ella será applaudida pela quasi unanimidade das opiniões do paiz. (Apoiados.)

Sr. presidente, feitas estas considerrções nas quaes me alonguei mais do que era meu intento, pelo que peço a v. exa. e á camara que me desculpem, declaro a v. exa. que conclui.

Vozes: - Muito bem.

(S. exa. não reviu.)

O sr. Mello e Sousa: - Começa declarando que não considera acto de boa administração a compra que o governo tem feito, de farinhas, porque d'ella resultará necessariamente o aggravamento da situação Cambial, visto que as farinhas custam mais caras que o trigo; e tombem resultará o aggravamento da crise operaria, pois que, importadas as farinhas, as fabricas suspendem á sua laboração e os operarios que n'ellas trabalham, vão ficar, por culpa do governo, reduzidos á miseria.

E, se é certo, como se diz, que tambem já ha pedidos para a importação do pão, logo que esta seja, auctorisada, maior numero de operarios ficará sem trabalho, e portanto mais grave se tornará a crise.

Entende que não se deve recusar protecção á agricultura, mas, a seu ver, essa protecção não se deve levar até ao ponto de prejudicar a industria de moagens, que está em circumstancias excepcionaes, visto que só póde funccionar quando o governo lh'o permittir.

Para que seja concedida uma bem entendida protecção é necessario providenciar-se por fórma que os interesses das differentes industrias fiquem equilibrados, para que dos beneficies concedidos a uma não resulte o prejuizo ou ruina da outra.

Depois de muitas outras considerações, termina o orador perguntando se o governo tenciona apresentar qualquer proposta de lei que modifique o regimen actual dos cereaes, porque a verdade é que, dentro da lei em vigor, ninguem se entende, e no caso affirmativo qual o sentido em que entende dever modifical-a.

(O discurso será publicado na integra se s. exa. o restituir.)