SESSÃO N.° 35 DE 5 DE AGOSTO DE 1908 7
mas não é costume entrar na ordem do dia antes das tres horas.
O Orador: — O que eu estava dizendo nada tinha de pessoal, por isso podia continuar no uso da palavra mesmo na ausencia de V. Exa.
O Sr. Ressano Garcia: — Mas eu é que não queria faltar a consideração devida a S. Exa.; seria incapaz d'isso, mas não esperava que se entrasse na ordem do dia antes das tres horas.
O Orador: — O Digno Par entendia que a questão das rendas se devia eliminar das relações entre o Estado e a Casa Real. Ora esta questão é simplesmente uma questão legal.
A lei orçamental de 13 de maio de 1896, no seu artigo 30.°, estabeleceu a forma de liquidar as contas da Casa Real com o Thesouro, contas em que figuravam direitos aduaneiros, devidos pela Casa Real, e reclamações d'esta por quantias devidas pelo Thesouro, pela occupação de propriedades cujo usufruto pertencia á Casa Real.
A lei orçamental de 12 de junho de 1901 no seu artigo 19.°, § unico, alinea a) determinou que o Governo ficasse autorizado a pagar á administração da fazenda da Casa Real a importancia das rendas dos predios pertencentes á mesma Casa e que o Estado usufrue para diversos serviços publicos, podendo abrir creditos especiaes necessarios, nos termos da mesma lei, e sendo esta disposição declarada de execução permanente.
Assira estão perfeitamente legalizadas as rendas, que já eram nesta data recebidas, não havendo que estatuir no presente projecto o direito ás rendas já estatuido por um artigo de lei de execução permanente, e simplesmente houve que declarar vigente a de 16 de julho de 1855, firmada por D. Pedro V e referendada por Braamcamp.
A differença entre as rendas cobradas pela Casa Real em epoca anterior a 1902 e 1903 e as que posteriormente e até 1905 e 1906 se pagaram não significa, creio bem, rendas acrescidas, mas o que a commissão do artigo 5.° terá de julgar para realizar a liquidação de dividas de rendas reclamadas pela administração da Casa Real, e que o Ministro da Fazenda de então julgou poder abonar á conta d'essas reclamações.
O Ministerio do Sr. João Franco fez cessar essa forma de encontro, e as rendas passaram a ser o que até então eram, aproximadamente réis 28:904$000.
Quanto ao direito da Casa Real a arrendar as propriedades de que é usufrutuaria, não pode a sua legalidade ser discutida, desde que se promulgou a lei de 16 de julho de 1855, já citada.
Nem é isto só usado em Portugal; em muitos países succede que a lista civil não se compõe só do que se dá em dinheiro: ha immoveis que constituem apanagio dos Chefes de Estado e que estes administram como acham melhor.
Nem colhe o argumento, muitas vezes repetido, de que, sendo o Estado o proprietario; não é justo que pague renda do que é seu, porque o Estado, desde que cedeu por lei o usufruto á Casa Real, já não tem a posse completa, e quando d'esta precisa, tem que pagar ao usufrutuario o usufruto que a este pertence por lei, isto é, o que a renda represente, sendo frequentissima entre particulares a hypothese, que o Codigo Civil não prohibe.
O Sr. Ressano Garcia: — Estou de acordo com V. Exa.
Sei perfeitamente que o usufrutuario pode arrendar um predio ao proprietario, mas o que eu peço a V. Exa., visto ter estudado esta questão, é que me diga qual é a lei que declara ser o palacio da Bemposta, por exemplo, usufruto da Casa Real.
O Orador: — É o decreto de 18 de março de 1834.
O Sr. Ressano Garcia: — Está bem; registo a resposta de V. Exa.
O Orador:— Vou continuar a responder ao Digno Par. A carta de lei de 16 de julho de 1855 diz o seguinte :
«Artigo 3.° Os bens da Coroa declarados no artigo 85.° da Carta Constitucional poderão ser arrendados, mas o prazo dos arrendamentos não poderá exceder a vinte annos nem ser renovado antes dos ultimos tres annos, excepto no caso em que uma lei o autorize.
Os arrendamentos feitos na forma sobredita serão mantidos pelos successores até a expiração do prazo convencionado, não havendo offensa dos seus direitos em alguma das outras clausulas».
O Digno Par continua a asseverar o que é aliás axiomatico: que quando uma questão se põe bem, mais facil é a sua solução.
Por bem a questão, no entender de S. Exa. consistiria em apresentar ás Côrtes o projecto da lista civil sem o artigo 5.°, e para prova do seu auto estabeleceu o seguinte dilemma:
Ou EL-Rei herdou de seu pae um activo superior ao passivo, e é pelo saldo, e até as suas forças, que é obrigado a pagar as dividas de seu pae, ou o contrario succede, e é uma violencia sem nome obrigar El-Rei a deducções na sua dotação, para pagar dividas que não contrahiu, e que não é obrigado a pagar. Sendo mais que certo que é a segunda hypothese a que realmente se dá, não quer aggravar a sua consciencia com um acto immerecido e violento contra o Chefe do Estado, que, como nós todos, muito respeita considera.
Dá-se com effeito a segunda hypothese ; as consequencias a tirar, dada a vontade expressa de El-Rei de pagar as dividas de seu pae, é que são, a meu ver, perfeitamente oppostas ao corollario de S. Exa.
Encarada a questão sob o ponto de vista do direito civil, seguramente a razão estaria do lado do Digno Par, mas dada a vontade sincera e claramente manifestada por El-Rei de pagar as dividas de seu pae, a violencia seria exactamente a abolição do artigo 5.°
Quem votasse contra o artigo 5.° collocaria sobre a cabeça de El-Rei a insinuação de que o joven e sympathico Monarcha quisera na sua carta representar uma comedia indigna da sua pessoa, do seu caracter, do seu culto pela verdade e pela justiça.
Não faltaria quem malevolamente attribuisse ao joven Monarcha connivencia numa comedia preparada, para ter solução na Camara conservadora, onde teem voto muitos dos seus familiares mais graduados.
O Sr. Conde de Lagoaça: — O projecto é de El-Rei ou do Governo?
O Orador:— O projecto é do Governo.
O Sr. Conde de Lagoaça: —O Sr. Presidente do Conselho está cobrindo se com El-Rei. Voltamos á vida velha.
O Orador:— Está o Digno Par enganado ; não ha nas minhas palavras a mais leve intenção de me cobrir com o nome de El-Rei.
V. Exa. foi muito injusto e eu tudo poderia esperar, menos que o Digno Par me interrompesse para fazer uma affirmação completamente inexacta e que corresponde a um acto de traição • que eu sou incapaz de commeter.
O Digno Par pode ter tido graça no seu àparte, mas não foi feliz.
Seguramente a Camara é soberana nas suas resoluções e tem, alem do direito, a hombridade necessaria para votar como a sua consciencia lhe ditar, mas os meus deveres de chefe de situação obrigam-me a ser coherente e a fazer nesta Camara declarações iguaes ás que fiz na outra casa do Parlamento, de uma maneira categorica e clara.