12 DE MAIO DE 1959 723
tringe-se a dois pontos, qualquer deles de relevo, dignos, por isso, de constituírem objecto de um projecto de lei e revisão constitucional. Referem-se, por sinal, ambas as alterações sugeridas ao problema geral das garantias contenciosas do cidadão - a garantia da fiscalização jurisdicional da legalidade da Administração e a garantiu da fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das normas jurídicas.
2. O projecto foi apresentado em tempo, conforme o disposto no § 2.º do artigo 176.º da Constituição. Dispondo a Assembleia Nacional, neste momento, em consequência da resolução de antecipação que votou, de poderes constituintes, nada se opõe a que a Câmara Corporativa lhe dê sobre o projecto em referência o seu parecer.
II
Exame na especialidade
ARTIGOS 1.º e 2.º
1. A função do n.º 4.º do artigo 109.º da Constituição é dar uma ideia geral das atribuições administrativas do Governo no âmbito metropolitano: compete ao Governo superintender no conjunto da administração pública. Seguidamente, faz-se nesse número uma especificação mais ou menos incompleta dos poderes em que se analisa esta superintendência. Entre os actos administrativos concretos, apenas se faz aí referência aos respeitantes à nomeação, transferência, exoneração, reforma, aposentação, demissão ou reintegração do funcionalismo civil ou militar.
A fonte directa deste preceito deve ter sido o n.º 4.º do artigo 47.º da Constituição de 1911, segundo o qual competia ao Presidente da Republica (como elemento do Poder Executivo e com referenda do Ministro competente) «nomear, reintegrar, transferir, aposentar, reformar, demitir ou exonerar os funcionários civis ou militares». Era por esta forma extremamente sincopada que nesta Constituição se enunciavam as atribuições administrativas do Executivo1.
A fórmula que se encontra no início do n.º 4.º do artigo 109.º - «fazendo executar as leis» -, essa encontra-se no artigo 122.º da Constituição de 1822, donde é natural que tenha sido chamada para o texto actual.
Quanto à parte final do n.º 4.º do actual artigo 109.º, a sua fonte é seguramente a parte final do n.º 4.º do artigo 47.º da Constituição de 1911. Esse n.º 4.º terminava assim: «..., ficando sempre ressalvado aos interessados o direito de recurso aos tribunais competentes». A fórmula agora usada é ligeiramente diferente: «..., com ressalva para os interessados do recurso aos tribunais competentes».
É esta fórmula que se elimina na redacção do projecto para o n.º 4.º do artigo 109.º, propondo-se no seu artigo 2.º que, em vez dela, seja adicionado um § 7.º ao artigo 109.º, concebido nos seguintes termos: «Todos os actos de conteúdo essencialmente administrativo, definitivos e executórios, dos órgãos da administração pública são susceptíveis de apreciação contenciosa, nos termos da lei, pelos tribunais competentes».
Não parece que esta sugestão seja de aplaudir.
2. Em primeiro lugar, o projectado § 7.º iria enquadrar-se num título referente ao Governo e, apesar disso, abrangeria actos praticados por órgãos diferentes nos órgãos governativos, uma vez que se refere, genericamente, a todos os actos ... dos órgãos da administração pública. Esta, considerada no seu aspecto subjectivo ou orgânico, abrange não só a administração governativa como também a administração descentralizada ou autárquica.
Depois, o parágrafo sugerido no projecto refere-se a «actos de conteúdo essencialmente administrativo» - e não há actos essencialmente administrativos, por oposição a actos essencialmente políticos ou de conteúdo essencialmente político, por muito que na lei orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei n.º 40 768, de 8 de Setembro de 1956, artigo 16.º, n.º 2.º) se tenha partido da ideia contrária. Actos políticos ou «de governo» são, se bem pensamos, todos os actos do Executivo que a lei considere absolutamente insusceptíveis de apreciação contenciosa, qualquer que seja o grau da sua vinculação legal e não obstante o seu carácter de actos definitivos e executórios. São actos que revestem todos os requisitos gerais de impugnabilidade, mas que o legislador, enumerativamente ou por meio de «cláusulas gerais», exclui do contencioso. O número destes actos é muito variável de sistema jurídico para sistema jurídico, conforme o grau de independência que o legislador em cada um deles entenda conferir ao Executivo, relativamente aos tribunais do contencioso administrativo. A história jurídica e o direito comparado revelam-nos que é de todo instável a lista dos actos políticos ou «de governo». Há sistemas em que esse número é muito restrito e há sistemas que transcendem o núcleo clássico dos «actos de governo», invadindo o sector tradicional da actividade administrativa. Isto sucede de todas as vezes que o legislador retira a garantia contenciosa a um acto da Administração, embora ele reúna todos os comuns requisitos de impugnabilidade1.
Sendo assim, nada se esclarece, nada se adianta, dizendo, como no projecto se diz, que todos os actos «de conteúdo essencialmente administrativo» ... são susceptíveis de apreciação contencioso.
Em terceiro lugar, o projecto parece orientar-se no sentido de garantir a todos os actos definitivos e executórios (excluídos os actos políticos, de que se faz provavelmente uma ideia muito restritiva) a possibilidade de apreciação contenciosa. Não se desconhece, naturalmente, que a fiscalização jurisdicional serve um interesse público da maior importância - a defesa da legalidade -, ao mesmo tempo que, através dela, se protegem, subsidiária ou reflexamente, os particulares cujos direitos ou interesses são afectados pela actuação ilegal dos agentes administrativos. Simplesmente, pode o legislador legitimamente entender que há, nesta ou naquela hipótese, um interesse público de mais peso do que o da defesa jurisdicional do direito - o interesse de deixar toda a independência aos agentes ante os tribunais, em termos de a decisão daqueles se ter de presumir correcta e legal, ainda que o não seja de facto. Quando isto sucede dizemos que o legislador deu primazia à «política» sobre o direito e a legalidade. Em vez do valor iustitia, o valor salus publica, aequitas política. Presta-se então culto, em tais hipóteses, não a uma concepção normativista da vida estadual, mas a uma concepção, digamos, «salutista». E esta a explicação para os casos em que o legislador exclui qualquer controle contencioso de certos actos da Administração e, designadamente, do Governo 2.
1 Em rigor, deve dizer-se que a Constituição de 1911 sempre ia mais longe do que isto, referindo-se no n.º 3.º do artigo 47.º à expedido de decretos, instruções e regulamentos, e no n.º 9.º a tudo quanto fosse concernente à segurança interna e externa.
1 Cf. Afonso Rodrigues Queiró, Teoria dos Actos de Governo, Coimbra, 1948,passim.
2 Cf. autor e ob. Cits., passim.