724 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 58
3. Não parece, portanto, que se deva perfilhar a doutrina e a forma do § 7.º proposta no projecto. Vamos ainda pela conservação do § 4.º, tal como está hoje redigido. Tem por ele, antes de mais, a tradição, pois, na parte que ora nos interessa, vem quase sem modificações, desde a Constituição de 1911. Por outro lado, não toma partido quanto à fiscalização contenciosa da actividade administrativa em geral, referindo-se apenas ao controle jurisdicional de alguns actos administrativos. Mesmo quanto a estes, é muito duvidoso que o intuito do legislador constituinte tenha sido o de assegurar a sua impugnabilidade contenciosa, sem possibilidade de excepções. Há, pelo menos, que atentar na diferença de redacção existente entre o texto do n.º 4.º do artigo 47.º da Constituição de 1911 e o texto da parte final do n.º 4.º do artigo 109.º da Constituição vigente: enquanto naquele se dizia que ficava sempre ressalvado aos interessados o direito de recurso aos tribunais competentes, no texto actual diz-se, mais frouxamente, que fica ressalvado para os interessados o recurso aos tribunais competentes. Não será que, assim, se quis estabelecer, não uma norma rígida ou cogente, mas uma simples directiva? De qualquer modo, à Câmara não repugna um entendimento liberal deste texto, em termos de se deveram considerar inconstitucionais todos os diplomas referentes aos actos administrativos enunciados na parte final do n.º 4.º do Artigo 109.º, na parte em que retirem aos interessados o direito de interpor desses actos recurso contencioso.
Resumindo, a Câmara opta pelo texto actual do n.º 4.º do artigo 109.º da Constituição.
ARTIGO 3.º
1. A interpretação corrente do corpo do artigo 123.º da Constituição é no sentido de ele se referir, não apenas à inconstitucionalidade material de qualquer diploma, mas também à inconstitucionalidade orgânica ou formal dos diplomas não promulgados pelo Presidente da República.
A primeira objecção a fazer à projectada redacção desse corpo do artigo 123." será, pois, a de passar a abranger só a inconstitucionalidade material. Uma portaria ou um despacho genérico, por exemplo, na medida em que ofenderem os princípios da Constituição no que respeita à forma que as regras de direito devem revestir ou à competência do órgão constitucional de que devem emanar, ficariam fora do alcance da fiscalização da generalidade dos tribunais.
Não parece que se deva seguir semelhante orientação.
2. Pretende-se com o texto advogado no projecto, em segundo lugar, que, quando em qualquer tribunal se suscitar, oficiosamente ou por iniciativa de qualquer das partes, o incidente de inconstitucionalidade de um diploma, o seu julgamento seja deferido a um Supremo Tribunal, subindo até aí, naturalmente, o incidente para esse efeito.
Antes de mais, temos de observar que o projecto não é claro quanto a saber-se se as decisões desse Supremo Tribunal em matéria de inconstitucionalidade seriam eficazes ergo umnes, isto é, se teriam o efeito de uma lei derrogatória ou se, pelo contrário, teriam eficácia só em relação ao pleito em que a excepção de inconstitucionalidade se deduzir ou for suscitada, conduzindo, portanto, apenas à inaplicabilidade do diploma reputado materialmente inconstitucional.
Na verdade, ambas as soluções cabem no texto que se pretende ver adoptado.
Com ele é compatível a solução de o Supremo Tribunal decidir o incidente com eficácia erga omnes, tendo, em consequência disso, o tribunal em que o incidente
surgiu obrigação de não aplicar o diploma superiormente reputado inconstitucional.
Mas também se pode sustentar que a decisão do Supremo Tribunal seria referida apenas ao pleito em que o incidente se levantou: decidindo que certo diploma é inconstitucional, o Supremo resolve que se não aplique e mandará que assim se proceda no pleito sub judice.
a) A primeira das soluções apontadas tem o inconveniente de atribuir ao Supremo Tribunal um papel político de extraordinário relevo. Todos os diplomas, mesmo os emanados do Governo e da Assembleia Nacional, estariam sujeitos ao veto judiciário de um único tribunal, que decidiria em primeira e única instância e que teria o poder de anular todo e qualquer diploma de ordem legal. Caber-lhe-ia, portanto, inapelàvelmente, a definição dos valores e dos princípios constitucionais, tendo o legislador ordinário que se cingir a essa definição em toda a sua produção normativa. Desta sorte se acabaria por conferir a um pequeno colégio de magistrados, de mentalidade normativista, quiçá forma lista e conservadora, um poder fundamentalmente constituinte. Far-se-ia dele o melhor e mais qualificado, o definitivo intérprete, dos rumos que a legislação pode seguir. Viríamos assim a consagrar o que Lambert chamou le gouvernement des juges.
Tal orientação não parece recomendável, embora tenha sido autorizadamente defendida entre nós 1, com o argumento de que, com o sistema actual, se corre o risco da diversidade de soluções e da incerteza da jurisprudência, que só muito lentamente, pela via morosa dos recursos, viria a desvanecer-se. O poder político - acrescenta-se - hesitará em dobrar-se às decisões da 1.ª instância e não cederá no propósito da aplicação da lei antes de se esgotarem as jurisdições dos tribunais superiores. Enfim, na prática a dispersão desta competência conduz a que fique realmente sem efeito tão importante poder conferido aos tribunais.
Salvo o devido respeito, não parece que seja necessário assegurar nesta matéria um grau de uniformidade jurisprudencial que transcenda o que se julga suficiente quanto à generalidade dos pontos de direito controvertidos nos tribunais. E não se cuida que seja de deplorar que a uniformidade possível dos julgados só venha a conseguir-se pela via dos recursos e, de qualquer modo, também pela lógica formação de correntes jurisprudenciais, que, como se sabe, têm uma eficácia de certo modo equiparável à que resulta, no direito anglo-saxónico, do princípio do stare decixis.
Também não parece de lamentar que o poder político se não conforme facilmente com as decisões que, em matéria de inconstitucionalidade dos seus diplomas, sejam tomadas em 1.ª instância. Não resulta daí qualquer inconveniente que nos impressione. De resto, que o poder político tenha propriamente de «dobrar-se» perante outro poder - eis o que não parece dever augurar-se como sistema. A fórmula hoje em dia em vigor, nos termos do corpo do artigo 123.º, é muito mais equilibrada, na medida em que não erige os tribunais em geral mini poder capaz de validamente revogar as leis e decretos-leis.
Por último, não se vê que a dispersão da competência de fiscalização da constitucionalidade das leis e demais diplomas pelos vários tribunais de todas as espécies e de todas as instâncias conduza a que essa competência fique necessariamente sem efeito. Ou muito nos enganamos ou a consequência dessa dispersão é justamente a inversa. O sistema, actualmente consagrado no corpo do artigo 123.º é, fundamentalmente, mais liberal do
1 Cf. Prof. (Doutor Marcelo Caetano, A Constituição de 1933, Coimbra, 1956, pp. 149 e seguintes.