624 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.° 67
no artigo seguinte (em que se define o âmbito da autonomia das regiões) se não prevê que as províncias ultramarinas tenham qualquer parcela de poder constituinte próprio, no exercício do qual possam auto-organizar-se constitucionalmente, nos limites fixados pela Constituição Política da República Portuguesa. Conclui-se que os referidos estatutos constituirão diplomas legislativos ordinários. Apenas se não pode concluir, com segurança, da presente proposta se tais estatutos serão objecto de legislação emanada de órgãos legislativos centrais ou de legislação proveniente de órgãos legislativos locais. Mas sobre este ponto se dirá adiante, no lugar adequado.
As regiões autónomas não terão, tanto quanto se pode depreender da proposta de alterações em apreço, um poder legislativo próprio, ou seja, apodado num estatuto constitucional elaborado por cada uma delas ou para cada uma delas concedido, expressão desde logo de uma decisão independente, soberana, sobre a sua existência política; a função legislativa que lhes cabe tem como exclusivo apoio a Constituição Política da República Portuguesa, a Constituição do Estado Português, a qual prevê, ela própria, que certos órgãos das províncias legislem sobre determinadas matérias. Esta competência não é, pois, delegada a esses órgãos por uma comunidade local soberana, não lhes é conferida pela comunidade provincial ou regional, mas pela própria Nação no seu conjunto, na medida em que é esta, e só esta, que estabelece as normas constitucionais que fixam semelhante competência. Noutras palavras, estamos perante uma hipótese de legislação descentralizada ou de descentralização legislativa - e não perante uma hipótese de legislação estadual.
E o que se diz da legislação diz-se da administração. Os órgãos executivos das províncias ultramarinas terão poderes administrativos que se apoiarão, não em lei constitucional própria de cada uma delas, mas na Constituição do Estado Português. As províncias são, neste domínio, inquestionavelmente, simples autarquias (administrativas) territoriais, simples pessoas administrativas descentralizadas.
Em parte nenhuma da Constituição tem estado ou (nos termos da proposto.) passará a estar prevista, por outro lado, a existência de tribunais próprios de cada província ultramarina, para fundar os quais seria também necessário que à população de cada uma delas fosse consentido elaborar uma constituição e que nesta uma própria ordem judiciária (um "poder judicial" autónomo) fosse instituída. Não ha nas províncias ultramarinas outros tribunais senão aqueles cuja criação é prevista na Constituição Política da República Portuguesa para todo o território nacional, providos por juizes naturais de qualquer parte deste território e não apenas do território da província respectiva.
Acresce a tudo isto que as províncias ultramarinas não poderão manter relações diplomáticas ou consulares com países estrangeiros, nem com. Estados estrangeiros poderão concluir convenções internacionais - o que significa que não serão dotadas de soberania externa, mesmo só limitada -, facto que importa igualmente não poderem ser consideradas unidades políticas soberanas, não poderem, em suma, ser consideradas Estados "em formação" e muito menos "Estados" federados.
É, assim, legítimo concluir, desde já, que é exacto continuar a considerar o Estado Português como um Estado unitário, como se diz no corpo do artigo 5.°, na redacção proposta, e que "o exercício da autonomia das províncias ultramarinas", especificamente e desde já consideradas regiões autónomas, "não afectará a unidade da Nação Portuguesa nem a integridade da soberania do Estado", como se diz no proposto artigo 136.°, soberania que, por seu turno, como se afirma no já analisado corpo do artigo 4.°, é, e continua a ser, "una e indivisível".
Verifica-se, em resumo, que na proposta de lei em análise não houve o (propósito e de qualquer modo não expressou o pensamento de nos afastarmos, por pouco que seja, da tradicional forma unitária do Estado Português, do sistema de um Estado política ou constitucionalmente integrado. A descentralização legislativa regional não afecta esta unidade. Já Marnoco e Sousa chamou no seu tempo a atenção para que "o Estado unitário não envolve necessariamente o governo uniforme e centralizado, e por isso um Estado não deixa de ser unitário ou simples pelo facto de reconhecer uma autonomia maior ou menor às circunscrições administrativas".
Num país como o nosso, cujo território é repartido por vários continentes, os factores geográficos impõem a regionalização do Estado. A especificidade de tantas parcelas da Nação Portuguesa no plano étnico, social, cultural e económico concorre no mesmo sentido e desaconselha a centralização. Aliás, essas parcelas têm necessidades que são mais particularmente sentidas pelos cidadãos aí nascidos, aí residentes ou aí de qualquer modo radicados - e essa circunstância justifica que, confiando no natural interesse deles pelos seus problemas específicos, uma vez que formam uma comunidade cujos membros se sentem solidários uns em relação aos outros, o legislador admita a participação desses cidadãos na obra comum da satisfação dessas necessidades. A regionalização não é outra coisa senão a descentralização levada para quadros territoriais e pessoais mais amplos do que aqueles em que tradicional e preferentemente tem sido utilizada. Inclusive no país clássico da centralização, na França, está na ordem do dia o problema da regionalização - e talvez isso suceda, precisamente, por ela ter pago o maior tributo às formas napoleónicas da organização administrativa. "En France, ce besoin de décentralisation est plus profond qu'ailleurs à cause des excès du système administratif traditionnel." 6 E, como um excesso eucarreta outro, não está faltando aí quem, como o secretário-geral do partido radical, Jean-Jacques Servan-Schreiber, proponha um regionalismo que praticamente se traduz na supressão do próprio Estado - o grande obstáculo de hoje em dia, em seu parecer, para a construção de uma federação europeia: o poder político passaria do nível da nação para o das regiões e seriam estas que se federariam na Europa. Na orientação da doutrina oficial, exposta pelos Presidentes Pompidou e Chaban-Delmas, a região confinar-se-á, porém, a tarefas administrativas de índole particularmente económica, insusceptíveis de serem resolvidas no quadro restrito das comunidades e divisões administrativas tradicionais.
As regiões autónomas, de que se fala no corpo do artigo 5.°, substancialmente já existem, no direito português vigente, como vêm existindo, designadamente desde o século passado 7, avant la lettre. Como quer que se tenham designado, as províncias ultramarinas vêm sendo persistentemente qualificadas como entidades descentralizadas em relação ao Estado, dotadas de competência própria, não apenas de competência executiva, mas também de competência legislativa, a exercer ora por órgãos electivos,
6 Cf. Maurice Duverger, "La Dócentralisation, I. Du pouvoir regional", em Le Monde, 15 de Dezembro de 1970.
7 Exactamente, desde 1838. A Constituição de 1838 admitiu, excepcionalmente, a competência legislativa dos governadores-gerais das províncias ultramarinas. Recorde-se, entretanto, que já por Carta Régia de 9 de Abril de 1778 se instituiu o Conselho Legislativo do Estado da índia, com competência para alterar, embora só a título provisório, as leis em vigor.