16 DE NOVEMBRO DE 1971 979
e não deve ser-nos indiferente que o sejam de uma forma ou da outra.
Estamos na transição para uma sociedade visando uma produtividade dimensionada e distribuída por novos métodos e por maneira diferente. A sociedade industrial alcandorou o capitalismo e o proletariado aos pontos limite de um eixo de tensão bipolar; a sociedade científica procura ultrapassar a tecnologia por novo humanismo e altear a própria estrutura interna da empresa, fazendo surgir entre os dois termos dialécticos um vector de participação consciente, para ambos concorrencial. Que significado poderá ter a contraposição clássica entre os elementos de produção num pais como os Estados Unidos, quando estes dispuserem - e acontecerá dentro de poucos anos - de 30 ou 40 milhões de diplomados por cursos universitários ou equivalentes? Ora, não pode ver-se Portugal como o mundo numa nação. Na dura luta por um futuro melhor, intereesa acima de tudo a capacidade de resposta aos impulsos da contemporaneidade. Com certeza dentro dos parâmetros próprios (e todos os países procuram respeitar os seus), mas não esquecendo o irónico remate do Presidente De Gaulle, numa reunião de especial transcendência: "Neste mundo em transformação, a primeira coisa que não pode subsistir - é a imobilidade..." E nem, o monolitismo soviético da época estalineana a isso conseguiu fazer excepção.
Entre nós, como no estrangeiro, sente-se a necessidade da paz e da ordem, nos espíritos e nas actividades. Porém, em si mesma a ordem não é um fim, é um meio - e um meio para se poderem realizar outros fins. Compreende-se melhor como disciplina livremente consentida na vida económica, social e política, do que como consequência directa de uma constante presença do Poder. O policentrismo pelo Presidente Marcelo Caetano, inegàvelmente facilitado, pode ter inconvenientes e riscos - pois, como atrás disse, nada há na vida sem reverso -, mas não atinge o culto da ordem: evita apenas a sua superstição. E já Santo António, em plena Idade Média, definiu lapidarmente a paz, chamando-lhe "a liberdade tranquila". Não sei se algum dia se deu da paz uma definição mais feliz.
À face do exposto, encerro este comentário à política interna repetindo algumas palavras do parecer da Câmara de 8 de Outubro de 1970, do qual tive a honra de ser relator: "... a cultura é experiência acumulada e espirito renovador, herança do velho saber e réplica aos novos desafios, tradição e revolução em cada momento conjuntural. A posse da existência está sòmente / Na aceitação gostosa dos limites, escreveu um dia António Sardinha. Mas a cultura abrange também, ao lado disso, toda a dramática aventura de uma inteligência que, livremente, quer viver e morrer a interrogar."
5. A conjuntura internacional dos últimos dois anos caracteriza-se igualmente pela transição: o mundo, fatigado de divergir, procura, e paga às vezes por preço excessivo, formas diferentes da confrontação agressiva para resolver os seus problemas mais instantes.
É sensível o facto no contacto entre os países, após a distensão das relações a nível das superpotências. E não
tem lugar sòmente entre o Leste e o Oeste; repare-se, por exemplo, como a Espanha tem procedido relativamente a Cuba ou ao Chile, apesar das divergências ideológicas que possa ter com os Governos respectivos. Em rigor, a contestação total só se mantém entre Israel e os Estados árabes, pois, quanto à União Sul-Africana e a Portugal, até na África Negra tem havido um começo de policentrismo nas decisões:
Deve ser-nos agradável registar que, por uma diplomacia talvez mais maleável (embora sem abdicar do essencial), Lisboa de novo se tornou num ponto de contacto, em alto nível, entre os dirigentes nacionais e internacionais; e que o Ministro dos Negócios Estrangeiros português esteve últimamente no Japão, na Tailândia e no Irão, para só referir visitas oficiais ou semelhantes a países asiáticos.
Mantenho-me no domínio dos factos ao registá-lo. Mas eles também nos devem lògicamente conduzir a tomar a iniciativa de uma estratégia prudente mas corajosa, para corresponder ao sinal dos tempos internacionais. Não aludirei aos aspectos económicos e financeiros da política externa possível. Reportando-me apenas aos entendimentos culturais, e falando como sempre a título exclusivamente pessoal, julgo lícito pôr o problema de saber se não valerá a pena ir ao encontro dos desejos da Roménia, país dos latinos orientais, no sentido de estreitar relações com todos os latinos do Ocidente. Ou se não se aproximará o ensejo de procurar corresponder aos propósitos do Presidente Houphoeut-Boigny sob a forma de um entendimento entre Universidades ou institutos de investigação portugueses e os seus congéneres de Abidjan, na Costa do Marfim.
Todavia, o acontecimento principal - e a grande incógnita - provém do ingresso triunfal do Governo de Pequim nas organizações multilaterais. Sabe-se, pelas constantes da história, que o espaço chinês tende a unificar-se quando a autoridade central é forte e tende a desagregar-se no caso contrário, perdendo então o contrôle dos territórios limítrofes. - a Manchúria, a Mongólia, o Si-Kiang, o Tibete, as províncias do Assan e do Norte da Birmânia, a influência nos estreitos orientais - a favor dos seus vizinhos e, sobretudo, dos Indianos e dos Russos. Por isso, a China e a Rússia sempre embateram, pouco musicalmente, "nas estepes da Ásia Central"... E não se vê por que havia de ser diferente na presente geração.
Por outro lado, sempre também a Rússia enfraqueceu a pressão sobre a Europa e sobre os estreitos ocidentais quando sentiu, na longínqua retaguarda siberiana, ganhar força militar e política o seu amigo, ou inimigo, chinês. Às constantes da história, mais uma vez em curso, podemos agora acrescentar um facto novo: num paradoxo à Chesterton, o sonho do domínio do mundo (e mesmo do mundo socialista) é grande de mais para ser vivido por dois. Por isso, não se me afigura possível prever qual será a atitude da China na balança mundial dos poderes; nem creio sequer que Pequim já esteja firme na política que, a longo prazo, mais lhe poderá convir. Mas julgo improvável de o seu ingresso na O. N. U. resultarem, para já, mudanças sensíveis na política de coexistência. E será a propósito da influência na África - em especial ao longo do oceano Indico- que mais fortemente hão-de colidir ou encontrar campos de ajustamento os interesses chineses com os interesses norte-americanos e ocidentais.
Continua, portanto, o mundo em busca de uma fórmula possível para equilíbrio na paz. Espalhado por quatro continentes, Portugal pode dar algum contributo para essa tarefa; e não deixa de ser importante que muitos compreendam enfim a vantagem de dialogar connosco, isto é, a vantagem em que os ouçamos e eles nos ouçam também.
Estamos longe do equilíbrio desejável e, até lá, ainda havemos de sofrer agravos e incompreensões. Porém, ficaram na nossa memória palavras aqui proferidas, onde a obra de arte se aliou ao sentido transtemporal do rumo exacto. Até lá, portanto, "tenhamos confiança, tenhamos fé na lealdade alheia e na própria, na ordem, no trabalho, na serenidade e seriedade com que havemos de encarar os problemas e acudir às dificuldades". Até lá; "confiemos sobretudo mais que na força das armas, na coesa e firme unidade nacional, no profundo e vivo amor à terra por