60 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 88
tara, as realidades político-sociais -, seria pura ilusão pensar no restabelecimento das antigas prerrogativas da Coroa, só compreensíveis em regime de Estado confessional, isto é, em regime de religião oficial, de Igreja de Estado, quando os nossos reis se apresentavam como seus protectores e defensores, como seus padroeiros, e nessa qualidade intervinham, de certo modo, na sua vida.
Mas - repete-se - pensar que a Santa Sé restauraria a intervenção do poder temporal na vida da Igreja, conservando-se porém este separado dela para tudo o que representasse reconhecimento expresso da religião católica como religião do Estado, com todas as suas consequências, corresponderia ao desconhecimento absoluto dos dados do problema e ao alheamento completo das realidades presentes nos domínios religioso e político.
Nem, de resto, no momento actual o Estado retirava qualquer vantagem de semelhante intervenção, que só contribuiria para a formação de um clero de feição mais política do que religiosa e para uma sua correspondente maior interferência nos negócios temporais, por ninguém hoje desejada: nem pelo Estado, nem pela Nação, nem pela Igreja.
Acresce que todas as concordatas celebradas durante o pontificado de Pio XI negam ao Estado competência para invadir a esfera da Igreja, tam ciosa da sua independência no domínio espiritual como o Estado justamente o e no domínio temporal.
For isso, crente está a Câmara Corporativa de que, mesmo no caso de o Estado Português haver reconhecido a religião católica como religião do Estado, a Santa Sé recusaria a este quaisquer poderes que de qualquer modo se assemelhassem ao antigo Beneplácito régio ou à nomeação régia dos bispos, com simples confirmação apostólica.
Demais, àquela havia já o Estado renunciado expressamente no decreto n.° 3:856, de 22 de Fevereiro de 1918, artigo 12.°, segundo o qual «as bulas, pastorais ou outras determinações escritas da Cúria Romana, dos prelados ou outras entidades que tenham funções dirigentes em qualquer religião não ficam dependentes da prévia aprovação do Estado para se publicarem e correrem dentro do País; mas os abusos ou delitos que elas contenham serão punidos nos termos das leis penais e da imprensa» 1.
Exigi-lo agora corresponderia, por sem dúvida, ao fracasso absoluto das negociações e ao sacrifício da ambicionada e inestimável harmonia dos dois poderes - espiritual e temporal - a autênticos preconceitos ou a sonhos tradicionalistas, alheios às realidades religiosas do mundo contemporâneo.
Bastará recordar que a livre nomeação dos bispos pela Santa Sé é hoje preceito expresso do Código de Direito Canónico, can. 329, § 2.º
Neste domínio concedeu a Igreja a Portugal o máximo que tem concedido nas concordatas celebradas com outros Estados:
1.° Nacionalidade portuguesa dos arcebispos e bispos residenciais, dos seus coadjutores cum jure successionis e auxiliares, dos párocos, dos reitores dos seminários e, em geral, dos directores e superiores de institutos ou associações dotados de personalidade jurídica, com jurisdição em uma ou mais províncias do País (artigo 9.°);
2.º Obrigação, antes de proceder à nomeação de um arcebispo ou bispo residencial ou de um coadjutor cum jure successionis, de comunicar o nome da pessoa escolhida ao Governo Português, a fim de saber se contra ela há objecções de carácter político geral, ficando porém secretas todas as negociações 1.
E trata-se de verdadeiras concessões e não, como poderia pensar-se, de restrições, pois actualmente, após a denúncia das antigas Concordatas, o regime era o da inteira liberdade de nomeação 2.
E assim, não se poderá negar que, confrontada com o regime vigente, a Concordata atribue ao Estado regalias que este não tinha.
C) Bens da Igreja
7. Quanto a bens, qual é o regime da Concordata?
Sua Eminência o Sr. Cardeal Patriarca sintetizou o aspecto pecuniário desta nas seguintes frases:
1.ª Se alguém, quer pensando no antigo regime concordatário, quer mesmo no dos modernos regimes concordatários, pregunta quanto pesa a Concordata no Orçamento português, desde já se responde francamente com esta seca palavra: nada!
2.ª Temos, pois: nem subsídio cultual, nem indemnização. A Igreja em Portugal continuará a viver exclusivamente da generosidade espontânea dos fiéis.
Mas dir-se-á: não entrega o Estado à Igreja os bens que anteriormente a 1910 lhe pertenciam?
Em princípio, sem dúvida, mas exceptuando-se:
a) Os bens que já não estejam na posse do Estado;
b) Os bens que se encontrem actualmente aplicados a serviços públicos;
c) Os bens que estejam classificados como monumentos nacionais ou como imóveis de interesse público, os quais, no entanto, ficarão afectados ao serviço da Igreja.
Quere dizer: pràticamente, e salvo possíveis raras excepções, o Estado reconhece à Igreja a propriedade dos bens que ela de facto ainda conserva.
Trata-se, portanto, mais de transformar em situações de direito certas situações de facto dó que de criar uma situação jurídica contrária aos factos actuais, salvo, é claro, a diferença jurídica que existe entre propriedade e mero uso da propriedade de outrem, diferença esta que, no caso presente, a bem pouco se reduz.
Neste domínio não é de admirar a generosidade do Estado, mas antes o alto espírito de renúncia que por parte da Igreja a Concordata revela.
1 O beneplácito - também conhecido pelas denominações de exequatur, pareatis, litterae patentes e cartas do publicação e que consistia na aprovação concedida pelo Estado às leis da Igreja, a fim de que pudessem produzir efeitos no reino - já existia em Portugal no reinado de D. Pedro I e em vigência se conservou até à sua revogação por D. João II, em 1497, para ser restaurado temporariamente no reinado de D. João V e definitivamente no reinado de D. José.
Quanto a designação dos bispos, escreve Borges Carneiro (Elementos de direito eclesiástico português, p. 142):
«O provimento das nossas sés seguiu a marcha geral.
Os bispos, a princípio, ou os nomeava directamente o soberano ou os elegia o cabido, só ou junto com o clero o povo da diocese; e o soberano, havendo por boa a eleição, apresentava o eleito ao metropolita para êste o confirmar. Até que no tempo de El-Rei D. Afonso V começou a exercitar-se o método que ainda hoje se guarda: a nomeação régia é a confirmação apostólica».
Proclamada a Republica este regime desapareceu porém, surgindo o da livre nomeação dos bispos pela Santa Sé.
1 Preceito semelhante se encontra nas concordatas com a Baviera, artigo 14.º, § 1.°; Polónia, artigo 11.°; Lituânia, artigo 11.°; Checo-Eslováquia, artigo 4.°; Itália, artigo 19.°, alínea 2); Roménia, artigo 5.°, § 2.°; Prússia, artigo 7.°; Baden, artigo 8.°, n.° 2.°; Alemanha, artigo 14.°, n.° 2.°; Áustria, artigo 4.º
2 No decreto n.° 3:856, de 22 de Fevereiro de 1918, artigo 12.º, dispõe-se, como vimos, que «as bulas, pastorais ou outras determinações escritas da Cúria Romana, dos prelados ou noutras entidades que tenham funções dirigentes em qualquer religião não ficam dependentes da prévia aprovação do Estado para se publicarem e correrem dentro do País...