62 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 88
E para que esta transcrição se realize rapidamente, impõe-se ao pároco a obrigação de enviar dentro de três dias cópia integral da acta do casamento à repartição competente do registo civil, para ser aí transcrita no prazo de dois dias, e pune-se aquele com as penas de desobediência qualificada quando, .sem graves motivos, não a envie.
Nem o Estado Português poderia dispensar-se da exigência, pois, segundo o disposto no artigo 15.° da Constituição Política, «o registo do estado civil dos cidadãos é da competência do Estado».
Veio a Concordata, neste domínio, ao encontro de uma das mais instantes reclamações da consciência católica: atribuir-se eficácia civil ao casamento religioso.
O casamento que, satisfazendo às exigências do direito canónico, veja a respectiva acta transcrita no registo civil, ver-se-á ao mesmo tempo validado perante as leis portuguesas desde a data da celebração, se aquela for feita dentro do prazo de sete dias.
Harmonizam-se assim as duas exigências: a da Igreja e a do Estado. A da Igreja, reconhecendo-se validade ao casamento-sacramento, e a do Estado, exigindo-se, para efeitos civis perante terceiros, que este conste do competente registo civil.
A êste respeito, escreveu-se já, em pareceres desta Câmara:
«É perfeitamente legítimo que, tendo em vista a circunstância de que uma grande parte ou a maioria da população professa uma religião determinada, que bem possa dizer-se a religião dominante ou a religião nacional, e em harmonia com ela costuma celebrar a união conjugal, o legislador atribua efeitos civis ao casamento religioso, confiando embora a funcionários próprios os serviços do registo do estado civil.
Ora, na lógica destas considerações, afigura-se à Câmara Corporativa que poderia e deveria mesmo ir-se agora até ao ponto de reconhecer efeitos civis ao matrimónio religioso, realizado em harmonia com os preceitos da religião católica, isto é, das leis canónicas que o disciplinam.
Mas a verdade é que, se para os católicos o casamento é mais do que o acto jurídico, criador das relações de família, que constituem os seus efeitos civis, não há razão para que a lei civil não reconheça como acto civil uma união que, segundo a lei religiosa daqueles que a contraem, é também destinada a produzir aquelas relações sociais que estão inerentes à constituição da família, e que só são jurídicas porque a lei as tutela, garantindo os interesses a que elas correspondem.
Com razão se tem, pois, observado que «a lei do casamento civil obrigatório constitue uma violação dos direitos da consciência, obrigando os fiéis à contrair matrimónio por uma forma que repugna à sua crença, e que, sendo feita a sério, implicaria a negação da identidade do contrato e do sacramento que a Igreja ensina».
Acresce que, como também nota o escritor cujas palavras ficam transcritas, a duplicidade de consentimentos matrimoniais, conjugada com a dissolubilidade do casamento civil, leva muitas vezes a situações absurdas e altamente inconvenientes.
Havendo dois actos distintos, com regimes jurídicos e condições de validade diferentes, pode subsistir um, dissolvendo-se ou anulando-se o outro. É o que sucede quando um dos esposos obtém o divórcio e ainda, por exemplo, quando se anula o casamento civil depois de realizado o casamento religioso, e por fundamentos que não podem ser invocados perante o juízo canónico para
a anulação do casamento-sacramento. Não raro acontece também que, depois de celebrado o casamento civil, o marido se recusa a contrair o casamento religioso que antes prometera realizar. E se o divorciado, que casara também religiosamente, tiver contraído novo casamento civil, ainda que queira voltar a convivência com a consorte a quem, no seu arrependimento, se considera perpetuamente ligado pelo vínculo religioso, a lei civil opõe um obstáculo, porventura «removível, a que essa união, que ele reconhece em sua consciência, seja uma realidade em face do direito.
Não deixaremos porém de notar que, se o sistema da dualidade de casamento, religioso e civil, sendo este facultativo, foi já uma realidade em Portugal, tendo-o consagrado, como vimos, o Código Civil, ainda hoje o praticam grande número de Estados que se pode bem dizer que caminham na vanguarda da civilização.
Adoptam efectivamente, e de há muito, o sistema de casamento civil facultativo, atribuindo efeitos civis ao casamento religioso, a Inglaterra, com os seus Domínios, as nações escandinavas, a Áustria, a Polónia, a Letónia, a Sérvia e a América do Norte. Mais recentemente foi 'ele adoptado na Itália, que em 1929 o sancionou pela Concordata de Latrão, e no Brasil, que o consagrou na sua nova Constituição política, como se referiu já no citado parecer desta Câmara sobre o projecto do Deputado Sr. Braga da Cruz, embora o Brasil não fosse tam longe como a Itália, nos termos em que reconhece efeitos ao acto religioso.
Mas é particularmente digno de registo o caso da Itália, pois neste país pode hoje dizer-se que o casamento está sujeito a um tríplice regime: o casamento civil, regulado no Código Civil e sua lei sobre o registo do estado civil; o casamento católico, celebrado perante o ministro da religião católica, nos termos da Concordata e da lei de 27 de Maio de 1929, que lhe dá execução; e o celebrado perante os ministros de outros cultos admitidos no país, que esta última lei também regulamenta, sendo, porém, o casamento católico aquele a que é assegurado o regime de mais perfeito e mais amplo reconhecimento, confiando a lei civil no rigor com que a lei canónica estabelece a disciplina da validade do matrimónio e na seriedade com que as autoridades eclesiásticas a fazem observar.
Não deixaremos tampouco de pôr em relevo os termos em que no texto da Concordata de Latrão se consagra o princípio do reconhecimento dos efeitos civis do casamento católico, pelo alto significado que para nós tem semelhante afirmação:
«O Estado italiano - diz-se no artigo 34.° da Concordata -, querendo restituir à instituição do matrimónio, que é a base da família, dignidade conforme às tradições católicas do seu povo, reconhece ao sacramento do matrimónio, disciplinado pelo direito canónico, efeitos civis» 1.
11. A mais importante novidade da Concordata não está, porém, na atribuição de efeitos civis ao casamento católico, mas no artigo 24.°, segundo o qual, «em harmonia com as propriedades essenciais do casamento ca-
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1 Pareceres sôbre o projecto de lei n.º 25, apresentado pelo ilustre Deputado Dr. Braga da Cruz, e sobre o projecto de lei n.° 111, dos ilustres Deputados Dr. Luiz da Cunha Gonçalves o Ulisses Cruz de Aguiar Cortês, publicados no Diário das Sessões de 22 de Março de 1935, suplemento ao n.° 82, e 29 de Abril de 1937, 4.° suplemento AO n.° 127, respectivamente.
O facto do se transcreverem passagens dêstes pareceres não envolve adesão integral a toda a sua doutrina - que alguns dos signatários, aliás, não perfilhariam -, mas somente à parte transcrita.