(Continuação)
27 DE MAIO DE 1940 - 79
por direito divino lhe compete. porque se reserva ao Estado o poder temporal de que por essência e por direito político é livre senhor e soberano detentor.
«Dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César».
Jamais, Sr. Presidente, poderia a grande máxima do Evangelho ter encontrado mais fiel e mais honesta e mais perfeita realização.
Nem clericalismo, nem estatismo, nem a Igreja a intervir nos negócios do Estado, com ofensa, da consciência política da Nação, nem o Estado oprimindo, cerceando as justas regalias e liberdade da Igreja, com grave ofensa dos seus direitos e da consciência católica do País.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Esta, Sr. Presidente. a essência dos princípios consignados na Concordata.
Bem haja o Govêrno que, com tanto acêrto e tanta . hombridade e tanta justiça, soube interpretar e realizar por tam notável acôrdo o sentimento nacional.
Bem haja Portugal, novo, forte, redimido, que, pelo seu civismo, pela consciência das suas tradições, pela segurança do seu destino eterno, sabe dar ao mundo - nesta hora conturbada e de angústia que, a humanidade atravessa, em que a honra e a justiça e a liberdade e o direito e todas as conquistas espirituais e morais de uma civilização se podem afogar em sangue- tam alto exemplo de serenidade, de justiça e de paz, de concórdia e de respeito pelo mais alto poder espiritual do mundo - aquele poder que vem de Deus e cuja doutrina e preceitos morais os povos esquecem ao digladiarem-se como feras; com inteiro desprezo da dignidade humana.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: a Concordata, de tam larga projecção na vida interna e externa da Nação, é assinada precisamente neste momento cruciante da história da humanidade em que correm rios de sangue numa Europa em armas, em que o próprio mundo e a civilização parecem ruir sob a ameaça do paganismo e de domínios de fôrça e de raça que se pretendem vinizar elevando sacrìlegamente a idolatria a culto religioso.
E é o Chefe Supremo da Igreja, com quem Portugal estabelece Concordata - o Sumo Pontífice, a nobilíssima figura de Pio XII, digno sucessor de Leão XIII, de Bento XY, de Pio X, de Pio XI - quem toma, com toda a autoridade da sua fôrça espiritual, a magnífica posição de honra e de bondade, e de inteligência e de clarividência em face da grande tragédia - - condenando a violência dos opressores, abençoando os fracos vítimas do despotismo escravizante..
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Por felicidade do destino, nós não sofremos ainda as agruras e calamidades da guerra.
Praza a Deus que não venhamos a senti-las.
Mas a verdade é que nenhum povo se pode hoje sentir seguro de não vir a ser envolvido pelas labaredas da fogueira que alastra.
Em qualquer hipótese, Sr. Presidente, que as palavras e sentimentos tam nobremente ditados pelo Chefe da Igreja a toda a humanidade caiam bem fundo na alma de todos os portugueses.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
Nutridas palmas da Assembleia e das galerias. O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Ulisses Cortês: - Sr. Presidente: realiza-se hoje a sessão extraordinária destinada a ratificar, nos termos do artigo 91.º, n.º 7.°, da Constituição, a concordata negociada entre a Santa Sé e o Estado Português - facto que em quaisquer circunstâncias se revestiria da maior magnitude, mas que no momento presente assume verdadeira transcendência nacional.
No seu aspecto diplomático, representa êsse acto o feliz complemento de uma obra de pacificação religiosa que vem dos primeiros tempos da Revolução e constitue um novo triunfo a acrescentar a tantos outros, reveladores da segurança e da clarividência com que tem sido orientada ùltimamente a nossa política externa.
Mas não é êste o sen único significado, nem talvez seja o mais importante.
Portugal foi sempre um país profundamente católico e a sua história é, em grande parte, a história da fé.
Desde a fundação da nacionalidade, a que a Igreja presidiu, até à expansão territorial e à epopeia ultramarina, realizadas sob o signo da cruz de Cristo, todo o esfôrço colectivo português no longo dos séculos representou simultaneamente uma emprêsa de engrandecimento nacional e uma obra de evangelização cristã.
A despeito de conflitos de equívocos em que tantas vezes se chocam o poder espiritual e temporál, não raro os reis portugueses - expoentes da vontade nacional, indomável nos seus instintos de independência - reivindicaram como seu melhor título de nobreza o de defensores da fé, traduzido nos epítetos de piedoso e de fidelissimo, que algumas vezes encontramos em seguida nos seus nomes na ampla sucessão dos tempos.
Uma revolução demolidora, inspirada por uma ideologia estranha e constituindo um puro fenómeno de mimetismo, político, abstraíu destas realidades sagradas pelos séculos e instaurou entre nós, agravando a idea do Estado laico, um Estado ateu, que contrariava profundamente a linha estável da nossa tradição histórica.
O acto para que hoje é solicitada a nossa ratificação representa o reatamento dessa tradição e a solução definitiva de um litígio; cuja perduração se traduzia numa injustiça e que magoava profundamente a sensibilidade da maioria dos portugueses.
Foi Leroy Beaulieu, segundo creio, quem afirmou que uma sociedade onde o Estado e a religião se encontram em luta não pode ser senão uma sociedade profundamente perturbada; e que aquela onde ambos pretendem viver numa ignorância mútua é quási uma sociedade impossível.
O Estado não pode, efectivamente, desconhecer o fenómeno religioso, e êsse facto tem de ter a sua projecção jurídica, que Barthélemy exprimiu assim: «se duas pessoas são obrigadas por inevitáveis circunstâncias a cohabitar sôbre um determinado país as suas soberanias, embora de natureza diversa, podem encontrar-se em conflito, torna-se indispensável fixar por uma convenção lealmente observada o seu regime de relações e os direitos que o cada um pertencem».
E então ou o Estado legisla por via unilateral impondo o seu direito interno às diferentes confissões religiosas ou procede por via de convenção.
Neste último caso, tratando-se da Igreja Católica, a sociedade internacional, fortemente hierarquizada e centralizada, exercendo a sua acção espiritual sobre centenas de milhões de pessoa espalhadas por todo o mundo», a convenção tem o carácter de um tratado e é, portanto, um instrumento diplomático, concluído entre duas pessoas de direito das gentes e submetido às regras do direito internacional.
Negociando com a Santa Sé, o Estado Novo enveredou avisadamente por êste último caminho e fê-lo, não para restaurar o antigo regime concordatário, inspirado pelos princípios regalistas, mas para celebrar, em har-