252 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 62
O Sr. Oliveira Ramos: - O meu modo de ver é fruto de vinte anos de viver com a maior desgraça.
O Orador: - Mas V. Ex.ª tem vivido menos do que eu, que fiz ainda há dias 64 anos. Tenho, por isso, com certeza, um maior conhecimento da vida do que V. Ex.ª
O Sr. Oliveira Ramos: - Mas o que V. Ex.ª não tem - felizmente para a tranquilidade do seu espírito e do seu coração - é o cargo que eu tenho há vinte anos.
O Orador: - Não o conheço, mas é de respeitar absolutamente a preocupação de V. Ex.ª
Tenho eu vivido, sem dúvida, mais do que V. Ex.ª numa época em que tudo se projectava no Estado. Era o Estado-previdência, era o Estado-providência, ilaqueando quási os estímulos e as iniciativas individuais e particulares.
Era para o Estado que se apelava permanentemente, para dar vazão, para dar margem, ao egoísmo, que é próprio da natureza humana, evitando o cumprimento do dever de cada particular que está em boa situação social e com meios económicos capazes de contribuir com o máximo possível para o bem-estar do seu semelhante.
E é o reflexo dêsse velho espirito que se percebe nas observações e críticas acêrca desta proposta. É quási uma inconsciente sujeição ao espírito de rotina, de que não procuramos libertar-nos para encarar o problema, para o futuro dêste País, como êle deve ser encarado.
Não acho, Sr. Presidente, ao contrário do meu ilustre colega que me precedeu nesta tribuna, que haja uma divergência fundamental nos princípios que informam a proposta e naqueles em que se baseia o parecer da Câmara Corporativa.
Considero a proposta, digamos, um esquema, com uma disciplina, com directivas, com normas gerais que abrangem tudo o que está determinado pela Câmara Corporativa em bases concretas. Não me parece, repito, que haja divergências fundamentais. Divergências aparentes, mais na forma que no espírito, mas não nos seus fundamentos, porque, se nós analisarmos bem a proposta e analisarmos bem o parecer, as respectivas bases duma e doutro, encontramos como que um desenvolvimento de um programa nas apresentadas pela Câmara Corporativa, talvez, digamos assim, uma organização mais detalhada para o futuro, mas absolutamente dentro do ponto de vista e dos fundamentos da proposta. Assim entendo.
Não desconhece o meu ilustre colega, com certeza, porque ninguém o desconhece em Portugal, o que foi através da nossa história essa admirável instituição das Misericórdias, a que aqui se referiu já um ilustre orador que me precedeu.
As Misericórdias nasceram de um anseio de fazer o bem, de um desejo de caridade, do espírito belo, admirável, caritativo de uma rainha. E à volta das Misericórdias se fez uma revolução grande, enorme, na assistência aos pobres, a ponto de chamar a atenção dos outros países pela originalidade da instituição e pelos resultados práticos por ela conseguidos.
A Misericórdia assistia na dor, assistia na miséria, assistia na desgraça, assistia no bom conselho, assistia na comunhão moral dos verdadeiros sentimentos de fraternidade cristã.
Que interessante que era, por exemplo, o dote que em algumas Misericórdias se concedia aos pobres que contraíam matrimónio, base económica no início de um lar que se constituía!
Que interessante que era isso!
Um dia, estas instituições, que tinham raízes católicas, porque se quis investir com a Igreja, que era a sua criadora, sofreram um ataque formidável, sobretudo lançado pela mesma heresia que se lançou contra os mosteiros.
Nestes mosteiros fazia-se também assistência, tantas vezes ligada à obra das Misericórdias, num mútuo auxílio, supletivos uns das outras, e ambos viviam em Portugal e existiram durante largo tempo, fazendo uma obra de caridade verdadeiramente notável.
Recordo aqui uma passagem interessante de um monge, frei João Baptista, num trabalho publicado com esta sugestiva frase em título: Os Frades perante o Tribunal da Razão. Dizia êle o seguinte:
"Quando soube da ocupação dos mosteiros ingleses, Carlos V disse: "Meu irmão matou a pata que lhe punha todos os dias uma gema de ouro". De facto, comenta a seguir: "... debaixo do remado de sua filha Isabel foi obrigado o Parlamento britânico a pagar onze bílis para ocorrer à miséria dos pobres, recurso que foi desnecessário em quanto existiam os mosteiros".
E veja V. Ex.ª, Sr. Presidente, como através desta acção revolucionária contra o espírito da Igreja, pela heresia protestante a princípio, que depois se disseminou por vários países e foi a inspiradora do movimento revolucionário da França, se fez o ataque sistemático, lento, mas de seguros efeitos, a todas as instituições tradicionais da nossa acção cristã.
Com a desamortização dos bens das Misericórdias e com a expropriação dos bens dos conventos, toda essa obra de caridade, em que não era preciso o Estado intervir, nem lançar no seu orçamento verbas para tais despesas vem pondo-nos perante a dura realidade dos factos.
Hoje o Estado é que se sobrecarrega com toda esta despesa.
É êsse regresso à tradição, adaptada, claro, às circunstâncias actuais, que deseja o autor da proposta, dando de novo às iniciativas particulares, que aquele ataque à tradição fez aniquilar ou esmorecer, estímulo e vida.
Êle foi sempre um paladino, em todos os congressos das Misericórdias, da reconstituïção dessa instituição, dando-lhe alento, dando-lhe vida e dando-lhe todas as possibilidades de realizar as suas aspirações e os seus fins. Ele viveu a vida das Conferências de S. Vicente, visitando o tugúrio dos pobres e, assim, sabendo e reconhecendo que 90 por cento, pelo menos, do auxílio que essas admiráveis instituições de caridade prestam só ao esfôrço e à boa vontade dos particulares se deve.
O homem é um complexo paradoxal de sentimentos. Tem uma face em que só o egoísmo o move. Essa não o deixa olhar para seus semelhantes tanta e tanta vez; mas tem outra face, a do amor do próximo, em que o move o sentimento da compaixão e o coração, e quantas vezes se sacrifica ao máximo para valer aos que o cercam em pobreza.
Coordenem-se estas manifestações de caridade, disciplinem-se, oriente-se êste sentimento de amor do próximo, aproveitem-se êstes impulsos caritativos e estimulem-se, e convenço-me de que o Sr. Dr. Oliveira Ramos há-de ver no futuro, completamente modificada, a natalidade que criou a assistência oficial do Estado, e só ela, mentalidade que deve ser combatida para que não continue, num período de revolução como aquele que foi iniciado pelo Estado Novo e em bases cristãs, a permanecer no êrro de tudo esperar do Estado, de tudo relegar para o Estado em tal matéria.
É assim que eu entendo a proposta e a sinto no meu coração de cristão e de português; é assim que a vejo, dando-lhe inteiramente o meu aplauso.
Mas estas considerações, que foram sugeridas pela intervenção do nosso ilustre colega Dr. Oliveira Ramos, posição que nas sessões do estudo manteve sempre, desviaram-me do plano que havia traçado para a minha exposição.