5 DE JULHO DE 1945
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Estas desempenharão, pois, a sua função fora das sessões plenárias ou paralelamente a elas e, portanto, sem prejuízo da acção pública da Assemblea.
É assim assegurada a esta a possibilidade do aproveitamento integral do período da sessão legislativa para o exercício efectivo das atribuïções parlamentares, ao mesmo tempo que se aumenta a sua eficiência e se lhe criam melhores condições de funcionamento.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Eis, Sr. Presidente, as considerações que me foram sugeridas pelo estudo da proposta no aspecto limitado que me propus versar.
Não eram elas as que, num debate desta transcendência, quereria e deveria fazer. Mas essas ficam para outro lugar e para melhor oportunidade.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. João Ameal: — Sr. Presidente: não tenho, de modo nenhum, o intuito de apreciar neste momento qualquer das alterações à Constituïção sugeridas pelo Govêrno, na sua proposta de lei. Outros, mais autorizados e mais competentes, o fizeram já nas sessões de estudo e o farão, decerto, quando se iniciar a discussão na especialidade. E poderá acontecer que, a propósito de um ou outro artigo, de uma ou outra disposição, se manifestem divergências ocasionais de critério — embora, segundo creio, a todos mova igual desejo de contribuir para manter o que deva ser mantido e para melhorar o que possa ser melhorado.
Subi a esta tribuna, não com a idea de sublinhar aquelas minúcias em que, porventura, o meu parecer não coincida em absoluto com o de algum dos meus ilustres colegas; antes para ser uma voz mais a pôr no devido relêvo um aspecto primordial, que apaga e suplanta os pormenores secundários da questão e em que o nosso acôrdo será, com certeza, unânime e completo. Na medida em que todos somos, substancialmente, portugueses — e portugueses irmanados pela sua formação, pela sua convicção e até já um pouco pela sua cota parte (grande ou pequena) de responsabilidade na obra da Revolução Nacional —, cumpre-nos celebrar o seguinte facto, tam extraordinário nos dias que correm e tam natural para nós: o Mundo inteiro atravessa - podemos dizer, há cêrca de três décadas — uma das maiores crises da História; essa crise produziu — além de incessantes lutas internas em quási todos os países, de fundas e teatrais mutações políticas, de choques apaixonados de teses e de grupos que puseram em causa os próprios fundamentos da ordem moral e social — duas imensas conflagrações, que alastraram por vários continentes e acumularam um sem-número de vítimas e de ruínas. Desde 1939, especialmente, viveu-se em guerra total; para muitos ela traria ou trará, como conseqüência, também uma revolução total. E, no entretanto, nós, portugueses, corremos o nosso tôrvo e amargo calvário; buscámos e encontrámos, por iniciativa própria, os remédios para os males que nos afligiam; levantámo-nos, graças a um impulso espontâneo e salvador, da decadência e do descrédito; reconquistámos estabilidade, prestígio e fôrça; impusemo-nos ao respeito dos outros povos; e, no meio das suas discórdias e convulsões, guardámo-nos, com dignidade indiscutida e indiscutível, dos perigos em que tantos se deixaram resvalar e em que alguns mesmo sucumbiram. Agora, quando a tormenta cessa na Europa — ou, pelo menos, se suspende —, encontramo-nos no primeiro plano daqueles que de nenhuma culpa podem ser verìdicamente argüidos e, pelo contrário, ganharam o direito de ser considerados, pela isenção da sua conduta, pela lealdade para com os aliados tradicionais, pela nobreza usada para com vencedores ou vencidos, pelo exemplo da sua ordem, do seu trabalho e da sua unidade, como um dos raros factores de paz numa época de guerra e, numa época de ódios sem freios, de extermínios sem conta, de tremendos atentados contra a moral, a justiça e o direito — um dos raros, raríssimos, factores de autêntica civilização.
Serenamente, com a tranqüila consciência que é uma das nossas maiores fôrças, pudemos assim prosseguir uma obra de vida quando a maioria das nações se absorvia nas tarefas da morte. Assistimos à tragédia universal, não com desinterêsse, que seria absurdo, ou com impassibilidade, que seria monstruosa; assistimos vigilantes, atentos ao que sabíamos ser os nossos direitos intangíveis e os nossos deveres indeclináveis. Mas, na medida em que éramos alheios à contenda, em que nela se jogavam ambições que não tínhamos e causas em que não participávamos — a nossa existência normal continuou, mais difícil, sujeita aos duros reflexos de um período duríssimo; no entanto, tal qual a escolhêramos e definíramos, pelo nosso caminho e pelos nossos métodos.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Eis o aspecto primordial que desejei celebrar aqui, certo de ser por todos acompanhado no júbilo legítimo com que o faço...
Decerto me perdoarão ter-me alongado nestas reflexões tam gerais e, na aparência, tam distanciadas da nossa ordem do dia. Suponho, no entanto, que elas dominam, fundamentalmente, todo o problema da revisão constitucional. E afigurou-se-me oportuno chamar — depois de tantos outros — a atenção da Assemblea para o que explica e justifica o sentido da proposta do Govêrno e o espírito com que deve ser por nós interpretada e acolhida.
Posso, resumir tudo numa fórmula simples, que exprime o meu inteiro ponto de vista neste debate: o que, acima de tudo, me interessa não são as emendas à Constituïção, que me parecem um simples acessório; o que, acima de tudo, me interessa é o que me parece o principal: aquilo que não precisou nem precisa de ser emendado.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: na magistral lição de coerência e de realismo que, neste mesmo lugar, o Sr. Presidente do Conselho nos deu, precisamente ao apresentar a proposta de que hoje nos ocupamos, acha-se, quanto a mim, o flagrante resumo da posição portuguesa diante da presente conjuntura política, quer interna quer externa.
Posição de calma expectativa, que se não deixa contagiar pelo nervosismo reinante por toda a parte; e de plena independência diante das mil inquietações e sugestões desencontradas que concorrem para o desconcerto geral e lançam a dúvida em muitos espíritos sem ainda marcarem um rumo definido e seguro.
Para bem se entender essa posição seria talvez útil olharmos um pouco para trás.
Nos princípios da era inaugurada pelo 28 de Maio, um dos estribilhos insistentes dos adversários exigia o regresso à chamada «normalidade constitucional». Queria isto dizer, na bôca dos que o empregavam, que a vida pública portuguesa se encontrava definitivamente regulada pela Constituïção de 1911 e só pelo seu restabelecimento se podia restabelecer a normalidade na vida pública portuguesa.