5 DE JULHO DE 1945
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liberdade indefinida e ilimitada pela concessão das liberdades positivas e concretas.
Eis, aliás, na essência, a Constituïção implícita da Nação Portuguesa nas horas maiores da sua História de oito séculos: foi grande, forte e criadora quando teve uma chefia resoluta e independente, apta a conceber e realizar grandes desígnios; quando a razão de unidade e solidariedade se sobrepôs às querelas e desavenças de correntes ou partidos; quando, graças a uma ordem consistente e duradoura, as liberdades necessárias à vida desafogada e habitual do povo puderam ser concedidas e exercidas sem atropelos, sem abusos e sem opressões.
A Constituïção. Portuguesa de 1933 assenta, dêste modo, em fundos alicerces espirituais e nacionais. Por isso, ao contrário da de 1911, os seus resultados foram aqueles que todos nós temos visto e garantiu ao País, em doze anos de restauração e de florescimento, a harmonia, o progresso e a paz. Regressámos, com ela, a uma normalidade, não apenas constitucional, mas nacional, porque se conseguiu reajustar o Estado à Nação.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Sr. Presidente: no ambiente de efervescência e de ansiedade que resulta da crise universal dos últimos amos, em que tantos sofrimentos flagelaram a humanidade e foram postas a nu, e mesmo agravadas tantas misérias e injustiças, agitam-se hoje numerosas reivindicações de ordem política e sobretudo de ordem social. Por uma lei bem conhecida, que se traduz no recurso ao ideal e ao perfeito quando o real é mais agreste e mais trágico, os homens, que decaíram novamente a estados de violência e de barbárie que imaginávamos ultrapassados há muito, sonham teimosamente com outras formas do paraíso na terra — depois de terem atravessado um inferno de dores, de angústias e de devastações. Daí a necessidade que certos condutores de povos sentem de lançar, nos seus discursos, nos seus manifestos ou até nos testos de determinados programas de reformas futuras, uma série de belas promessas, declarações de direitos, anúncios de regalias, listas aparatosas e abundantes de liberdades a restaurar ou a criar. Há nisto — e não dou à palavra o seu sentido pejorativo — um pendor compreensível para certa forma de demagogia, o que é sempre perigoso pelas excessivas esperanças que alimenta e pela fatal distância a que delas têm de ficar as realizações. Mas há também nisto uma tendência respeitável e simpática para dar aos homens, torturados e feridos por mil desgraças, alento e confôrto — para os persuadir de que não foram vãos as provações suportadas e os sacrifícios feitos.
Todas essas reivindicações, na medida em que sejam viáveis, todas as promessas oferecidas à ansiedade dás massas, na medida em que sejam formuladas de boa fé, podem ser nìtidamente inclusas nas disposições basilares da nossa Constituïção. Já o demonstrou, com excelente a-propósito, no seu discurso de anteontem o Sr. Dr. Mário de Figueiredo.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Direi mais: ninguém tem maior autoridade para se apresentar como paladino da melhoria do nivel da vida humana do que os servidores da doutrina que informa, na sua substância e em cada um dos seus artigos, a Constituïção de 1933. Porque são êles quem está ligado a um corpo de princípios que mereceu ser chamado o do humanismo integral e quem, por isso mesmo, se acha sempre na extrema vanguarda, porque olha de cima a natureza e o destino dos homens e a génese e o desenvolvimento das sociedades.
Jorge Viance, autor dêsse modelar estudo que intitulou Préface à une Reforme de l’État, ocupou-se noutro dos seus livros, Démocratie, Dictature et Corporatisme, do regime português. Acentuou, primeiro, que o velho liberalismo «está longe de erguer barreira sólida, capaz de evitar o individualismo socialista ou o individualismo totalitário; leva mais depressa a um e a outro». A seguir, para dar uma súmula do nosso Estado Novo, acrescentava:
Só se regressa ao bem humano desde que se tome o homem tal qual é, como pessoa, não erguida ao pedestal de superindividualismo, que só poderá gerar a anarquia, mas humildemente enquadrada no lar e na série de comunidades que, subindo até à sociedade civil, lhe permitem cumprir o seu destino.
Assim Jorge Viance definia Portugal como Estado personalista, isto é, firmado no conceito do homem total, mas do homem limitado por aquilo que o ultrapassa. Êste mesmo conceito domina algumas das mais recentes escolas da sociologia e do direito católico — nomeadamente a avançadíssima e luminosa Escola da Instituïção, de que Hauriou lançou os fundamentos, mas de que Jorge Renard foi o vibrante cristalizador e propagandista: a Escola da Instituïção, que mostra a sociedade constituída por hierarquias e organismos ordenados à legítima satisfação do homem-pessoa, para garantir a plenitude do bem comum, que é bem de cada um e bem de todos.
É nesta linha insuperàvelmente humana e inexcedìvelmente progressiva que se insere a concepção que determinou a arquitectura da Constituïção de 1933. E neste plano que deve ser colocado o problema agora pôsto diante de nós.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Compreende-se, portanto, que o Sr. Presidente dó Conselho nos tinha dito aqui em 18 de Maio: «O Govêrno não viu, da sua parte, necessidade de introduzir na Constituïção profundas alterações».
Significa isto que a Constituïção seja perfeita e imutável? De modo algum! por isso lhe são propostas diversas modificações, e outras, ainda nesta ou em revisões futuras, deverão ser-lhe feitas, para melhor a adaptar às circunstâncias variáveis da Vida nacional.
As palavras do Sr. Presidente do Conselho significam, ao que penso, que a Constituïção não necessita de ser alterada naquilo em que, por corresponder e atender às constantes da humana condição e da existência colectiva dos portugueses, nada tem de ressentir-se de fenómenos que a elas não dizem respeito.
Por exemplo: fala-se muito em elevar o nivel da vida humana. É forçoso distinguir. Pode tratar-se de uma aspiração, não apenas aceitável, mas louvável e justa, à qual aderimos sem reserva e para a qual estamos decididos a não descansar nos nossos esforços. E pode tratar-se de uma «elevação» concebida sob os signos de determinado ideal puramente materialista da mesma vida humana — o velho ideal epicurista ou hedonista que reaparece, ùnicamente alimentado pela soma de prazeres e apetites inferiores que satisfaz. Ora êste nunca será o de um povo que nasceu em plena cruzada peninsular e fez um Império nas cinco partes do Mundo para a todas levar a dilatação da fé de Cristo. Antes seria lógico temer que, em vez de elevar assim a vida dos homens, contribuíssemos acaso para lhes abaixar