5 DE FEVEREIRO DE 1947 463
cola. Tive por isso oportunidade de avaliar com justeza o notável esforço que esse grande mestre de Agronomia teve de realizar para colocar a escola ao nível exigido pelos anseios do progresso da agricultura nacional. Foi, na realidade, o mestre Sousa da Câmara quem conseguiu que essa escola técnica, apenas apta para a preparação de umas escassas dezenas de alunos, se transformasse no estabelecimento de ensino responsável pela prepararão de centenas de técnicos, a quem se deve, em grande parte, os progressos já hoje nítidos dos vários sectores da agricultura nacional.
Lutou, porém, esse insigne professor e cientista de renome internacional com a falta, quase absoluta, de meios materiais. Foi esta a circunstância determinante do não cumprimento rigoroso de certas normas de contabilidade pública. Ouso por isso chamar a atenção do Governo, pedindo que este melindroso caso seja olhado pelo prisma da nobreza das intenções que levaram o Prof. Sousa da Câmara a proceder como procedeu.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Franco Frazão: - Sr. Presidente: incapaz de acompanhar o Sr. Deputado João do Amaral na elegância da sua palavra, que sempre cativa o nosso espírito, anima-me, com a mesma sinceridade, o mesmo desejo de reparar aquilo que a. primeira vista parece irreparável e sem remédio.
Trata-se, Sr. Presidente, de sentença de tribunal.
A Assembleia Nacional não pode ser pretório de causas mesmo justas, salvo se revestirem aspectos de generalidade ou feição moral, que é sempre lícito focar aqui.
Acresce que o assunto se refere a prestação de contas perante tribunal cujas funções são fundamentais para a ordem e equilíbrio da administração pública e que, pela sua alta competência e pela equidade dos seus juízos, tem conquistado autoridade indiscutível na sua ingrata e difícil missão. Na verdade, era urgente, era indispensável, remediar erros que de longe vinham, tornar a administração justa, parcimoniosa, equilibrada, garantia do renascer de uma pátria cujo prestígio estava seriamente abalado.
Temos de aceitar, portanto, a sentença proferida com toda a sua dureza. O tribunal julgou e não podia talvez julgar de forma diferente.
Mas não posso ignorar, Sr. Presidente, e o próprio tribunal o reconhece, quanto é melindrosa e delicada a situação dos conselhos administrativos de certos estabelecimentos de ensino, e principalmente daqueles onde as actividades dos laboratórios de estudo e de investigação exigem a presença de pessoas que, pela sua formação especializada, estão normalmente afastadas de quaisquer preocupações de natureza contabilística ou de pura administração.
A história da ciência está cheia do relato das chamadas distracções dos sábios. Umas vezes enternecedoras, como a de um Pasteur, que, após larga dissertação relativa aos micróbios, bebe a água do copo onde, com infinitas precauções, acabara de lavar um cacho de uvas poeirento; ou trágicas, como a de um Pierre Curie, absorto no seu sonho, onde o radium brilhava como estrela fulgurante, morto, vítima da sua imprudência, numa rua enlameada de Paris.
Mas essas distracções são fruto de intensa vida interior, de sublime e constante ascensão do espírito para esferas em que preocupações de ordem material pouco contam.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - As horas mais felizes da Humanidade têm nascido dessa imensa distracção do sábio.
Será justo, então, Sr. Presidente, será mesmo possível, sem graves inconvenientes, amarrar arteiramente esses técnicos às intrincadas dificuldades da classificação orçamental e das suas rubricas ? É responsabilidade de gerências, quantas vezes ainda complicadas pela ausência dos indispensáveis elementos de apoio de ordem administrativa? Julgo que não.
Sr. Presidente: o Prof. Manuel Sousa da Câmara pertenceu a esta Casa como Deputado numa época em que ardia em labareda alta a paixão política, ameaçando obscurecer com seus fumos envenenados os mais claros espíritos. Não hesitou, contudo, a tomar aqui atitude, cheia de nobreza, na defesa de colega seu da Escola, adversário político, vítima da aplicação rígida da lei.
Ligam-me ao Instituto Superior de Agronomia intensos laços sentimentais. Teimosamente, continuo a pensar que dessa escola, com largas tradições, devem sair as gerações novas de agrónomos, que. aliando ao conhecimento das realidades do campo o alto ideal da perfeição técnica, sejam capazes de transformar o agro português.
Não posso, assim, deixar de vibrar profundamente ao ver essa escola atingida em três dos seus mais ilustres mestres.
O professor de Tecnologia Agrícola Colonial Melo Geraldes, alma do Museu Colonial, com larga folha de serviços, é bem conhecido entre nós e no estrangeiro.
O professor de Física Agrícola Mendes Frazão, dedicado a Ecologia autor de um interessante reconhecimento agro lógico do Ribatejo, é o sucessor do grande mestre que foi Filipe de Figueiredo.
Mas impressiona ainda mais, sem qualquer desprestigio para seus colegas, a figura do Prof. Sousa da Câmara.
Viveu para a sua Escola, onde entrou muito novo, e para a ciência. Como político, como Deputado, como Ministro, em seu favor se bate e se sacrifica. Renovador da velha Escola Agronómica, em longos anos de direcção, a ele se devem, em grande parte, as suas instalações tecnológicas mais modernas, como a oficina de máquinas, os laboratórios de arboricultura e de genética. O seu desejo era que a Escola não parasse, progredisse sempre, ganhando em autoridade e prestígio. E quando uma torrente de alunos a veio procurar, quando o Estado nela foi basear os seus largos movimentos de fomento cultural nas Campanhas do Trigo e da Produção Agrícola, deve ter vivido as horas mais felizes de toda a sua carreira.
A par desta dedicação constante, é o trabalhador infatigável do Laboratório de Patologia, o micologista exímio, que não cessa de alargar o âmbito da microflora lusitana, descrita num latim elegantíssimo, prova de vasta cultura humanista, que neste País tanto se vai perdendo. O seu nome, com inteira justiça, há muito ultrapassou as nossas fronteiras.
No entanto, é este homem de ciência, este professor, este dedicado obreiro da renovação na nossa primeira escola agronómica, quem está em causa.
Conhecedor da primeira deficiência, solicitou, numa atitude digníssima, inquérito imediato, tomando sobre si todas as responsabilidades.
O inquérito faz-se e reconhece a perfeita honorabilidade da gerência. O Estado não fora prejudicado; apenas foram infringidas as normas usuais de administração.
Entretanto o limite de idade atinge Sousa da Câmara. Esta lei inexorável, triste como o dobrar dum sino que incita a rever todo o passado e obriga a sondar o futuro numa interrogação, que o homem, tantas vezes pela vida fora, procura adiar. E nesse instante, quando mais necessárias são as facilidades materiais, quando mais indispensáveis se tornam todos os carinhos, é brutalmente atingido materialmente e na sua sensibilidade de homem de bem.