674 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 93
O Orador: - Creio não haver ninguém no norte do País, mesmo que não pertença ao distrito do Porto, que não agradeça àquele governador civil a coragem de arrostar com muitas dificuldades e a virtude de, ao vencê-las, dar aos restantes distritos do Norte o exemplo do caminho a seguir.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Entretanto, dias passados sobre a homenagem relatada nos jornais e na qual não tomei parte só por dela não ter conhecimento prévio, o Grémio Concelhio dos Comerciantes de Carnes do Porto vem perante esta Camará prestar ao coronel Joviano Lopes outra espécie de homenagem. Julgava o Grémio que ela seria negativa. Vou demonstrar ser também perfeitamente positiva ...
A propósito da acção dos grémios, quer facultativos quer obrigatórios, a minha atitude é sobejamente conhecida pela Câmara, para que seja necessário entrar em considerações muito longas.
Entendo que, no sector «corporativismo» do nosso objectivo político-social, há que considerar três fases perfeitamente distintas. Só alguns espíritos primários, que falam em organização corporativa sem saberem o que ela é, porque não têm tempo nem capacidade para a compreender, andam constantemente a confundi-las: doutrina, orgânica e aplicação prática.
Quanto à doutrina, podemos garantir com orgulho que ela tem princípio, meio e fim. Estudámo-la profundamente, conhecemo-la em todas as suas dificuldades e, felizmente também, em todas as suas vantagens possíveis.
Quanto à orgânica, há que confessar que ela ainda se acha no princípio. Não atingiu nem o meio nem o fim.
Aguardo momento mais oportuno, que será o da discussão do relatório da comissão de inquérito à organização corporativa, para a tentativa de demonstrar que, por agora, apenas estamos num mau princípio.
No tocante à aplicação prática, afirmo que tudo quanto conheço acerca dela me leva à convicção, talvez errada ou pessimista, de que na maioria dos casos essa aplicação prática é feita precisamente ao invés da doutrina e da orgânica.
Por isso assistimos à transformação de certos grémios em cartéis (apoiados) o doutros em casas comerciais ou industriais.
Por isso ainda anteontem vimos alguns outros que, relegados para plano secundário ou terciário, só graças ao seu espírito combativo, bem orientado (sublinho «bem orientado»), conseguiram que fosse feita justiça à coragem com que defenderam os direitos dos seus associados.
Alguém me apontará: também o Grémio Concelhio dos Comerciantes de Carnes do Porto, com esta representação, vem lutar em prol dos seus associados.
E, por comparação simplista com a minha atitude de anteontem, parece que se deveria exigir-me que lhe acudisse imediatamente com os argumentos então empregados: ora vejam V. Ex.ª este pequeno grémio a combater contra a democracia! Em nome dos ideais corporativos, peço que o acarinhem, que o protejam, etc....
Ora, em vez disso, censuro-o e critico-o com aspereza.
Porquê?
Precisamente porque, neste caso, o espírito combativo foi mal orientado, a razão é nula e a oportunidade péssima, e vou já demonstrá-lo: quando certas pessoas me afirmam que às vezes os militares são vítimas de uma deformação profissional, aquela que se adquire com o espírito de comando, costumo responder que os bons oficiais, ao contrário do que se pensa, possuem maleabilidade intelectual. Para adquiri-la também, os políticos deveriam ser obrigados à frequência da cadeira de Estratégia, onde aprenderiam, entre outras coisas, as noções
de preparação e oportunidade do ataque. Por mais justo que seja o nosso ponto de vista, ou por maior sentimento patriótico que nos incite a repelir o inimigo, seja o armado ou o político, que só aparentemente está desarmado, deve guiar-nos o sentido da oportunidade, que indica ao chefe político, ao chefe militar, ao chefe corporativo, qual o momento próprio para atacar. Nós, no exército, não costumamos atacar com bom tempo se a operação exige chuva. Pelo contrário, quando a atmosfera está muito carregada e os trovões nos ameaçam por todos os lados, abstemo-nos de operações que requerem bom tempo. A bom entendedor, meia palavra basta.
Tenho a certeza, porque de contrário não falaria aqui, que o Grémio Concelhio dos Comerciantes de Carnes do Porto, para apresentar a sua reclamação, escolheu precisamente o momento menos oportuno. Mesmo que ela fosse justa, bastaria isto para condená-la da maneira mais categórica, sob o ponto de vista político.
Fica demonstrado que, por inoportunidade, carece de razão política. Vamos a ver agora por que lhe falta fundamento jurídico.
Há poucas semanas recebi nesta Assembleia uma lição de ilustres homens de leis: afirmou-se que se um assunto se acha entregue aos tribunais não devo ser versado pelos Deputados.
Por sinal, no caso concreto referido, eu nem sequer sabia, no momento em que falei, que o assunto se encontrava sub judice. Parece-me até que, por diferença de horas, realmente não o estava ainda. Discordei da opinião expendida, porque compreendo perfeitamente que um Deputado que não tenha interesse directo nem indirecto em determinado assunto trate dele nesta Assembleia, se o entender conveniente ao interesse geral.
Se não tivesse direito a proceder assim, então uma qualquer das partes interessadas em determinado caso, para fugir à respectiva discussão política, apressar-se-ia a pôr a questão nos tribunais. Deste modo conseguiria tapar a boca à Assembleia Nacional, o que é inadmissível.
Isto quanto a nós, Deputados. Mas quanto às partes interessadas, os juristas a que me referi têm razão completa e absoluta naquilo que disseram. Então, sim, não é lícito, a quem tenha seguido a via hierárquica, apelar para o contencioso antes de obter despacho na primeira via. Como também não é lícito, se uma das partes recorreu ao Supremo Tribunal Administrativo, vir simultaneamente pedir socorro ao poder político da Assembleia Nacional. Ora, no caso do Grémio Concelhio dos Comerciantes de Carnes do Porto, acontece uma coisa curiosíssima: segundo está escrito na própria representação, ele, além do recurso contencioso - Supremo Tribunal Administrativo -, interpôs, nos termos do § 1.° do artigo 411.° do Código Administrativo, o competente recurso hierárquico, isto é, para o Ministro do Interior, dos actos do governador civil considerados ofensivos dos seus legítimos direitos.
Já que estou usando imagens militares, posso afirmar que isto não é um grémio! É uma metralhadora de modelo antigo, daquelas de três canos, um apontado para o Supremo, outro para a Câmara dos Deputados e outro para o Ministro do Interior.
Mas, nos tempos correntes, de fortes explosivos modernos, ai de quem usar armas de tipo antigo, porque lhe acontece aquilo que efectivamente aconteceu. As armas fazem explosão nas mãos de quem pretende servir-se delas.
Compreendia-se perfeitamente que o Grémio aguardasse o resultado do recurso hierárquico, nos termos do artigo 411.° do Código Administrativo, e que, se ele não fosse atendido, realizasse então uma só de duas coisas: ou a reclamação política, através da Assembleia Nacional,