15 DE ABRIL DE 1948 457
Porém, é tempo de me ocupar mais detidamente do projecto e da proposta em discussão, e a esse respeito quero reconhecer também a alta intenção que da parte do Sr. Dr. Sá Carneiro e da parte do Governo do País presidiu à confecção destes dois documentos.
Desejo salientar, de um modo especial, o que há de simpático no projecto do Sr. Dr. Sá Carneiro em se atender à limitação das possibilidades de alguns aumentos de renda da parte de certos inquilinos, propondo-se a constituição de um fundo especial, cuja inviabilidade foi, aliás, proclamada no parecer da Câmara Corporativa e reconhecida, implicitamente, na proposta do Governo, mas a respeito do qual eu direi dentro de alguns momentos o que penso.
A gravidade da questão do alojamento não é exclusivamente portuguesa. Ela tornou-se mesmo especialmente intensa nos países devastados pela guerra. Em França fez-se em 1945 um inquérito às condições de existência de 1:080 famílias, pelo Instituto Nacional de Estudos Demográficos, e verificou-se que a percentagem para o aluguer de casa era, nessa altura, de 3,2 por cento nos orçamentos de operários e de 6,8 por cento nos dos reformados e, de um modo geral, das classes inactivas.
A média era de 3,9 por cento, mas este número é muito inferior ao que era anteriormente em França, pois em 1934 a percentagem atingia 10 por cento das despesas familiares.
Também na Finlândia a política do alojamento era intensa antes dos últimos acontecimentos.
Promoveu-se a construção de casas numerosas e a preço acessível, facultando-se empréstimos a baixo juro e com facilidades de amortização para essas construções. A lei de 1944 estabeleceu subvenções e a concessão de terrenos para construção; nos imóveis era fixada a proporção de dois terços das moradias para as famílias numerosas. Esta preocupação do número de pessoas da família domina, de um modo geral, a política de alojamento em quase todos os países que do assunto se ocupam.
Na Suíça o alojamento, como tradicionalmente é confortável, o seu encargo representa 15 a 20 por cento do salário; só nos meios mais abastados é que chega a atingir 30 por cento do rendimento.
Nalgumas cidades, como Zurique, a municipalidade prevê um crédito anual destinado a dar um subsidio de alojamento, variável com o número de filhos, àqueles indivíduos cujo salário seja inferior ao julgado necessário. É preciso notar que em França se previa ultimamente um esforço idêntico.
Na Suíça existem créditos à iniciativa privada para edificações de imobiliários e as cooperativas de construção desfrutam ali um grande favor. Só por si, nos últimos anos, têm realizado uma tarefa monumental, com a construção de mais de 20:000 habitações.
Em Portugal o nível de vida complica bastante o problema; materiais de construção caros e, por vezes, insuficientes, terrenos caros, mão-de-obra especializada insuficiente e, por outro lado, pouca margem para elevadas rendas nos orçamentos familiares.
Posso apresentar à Assembleia os números, que julgo inéditos, de um inquérito sobre as rendas desejadas pelos membros de uma sociedade de construções. São eles: até 150$ por mês, 11,3 por cento; de 151$ a 300$, 53,8 por cento, etc. Quer dizer que mais de metade dos indivíduos inquiridos desejava, para seu alojamento e de suas famílias, casas cujas rendas, para caberem dentro das suas possibilidades, estivessem compreendidas entre aqueles 151$ e 300$.
Em matéria de inquilinato há interesses antagónicos e múltiplos. Cada um tem um caso ou centenas de casos a contar; mas o que se torna necessário, para quem tem de decidir um assunto desta natureza, é, criteriosamente, procurar qual a posição, qual a orientação geral a adoptar.
Devo dizer que, por mim, pouco me importa que aquilo que vou dizer agrade ou desagrade a este ou àquele. Vou falar em obediência a imperativos da minha consciência, vou falar com a coragem que uma questão destas exige.
Penso, desde já, que na discussão de um projecto ou proposta de lei que não envolve modificações em matéria constitucional nos devemos naturalmente colocar dentro da Constituição, a qual, no seu artigo 35.º, diz:
Capital, propriedade e trabalho desempenham uma função social em regime de cooperação económica e solidariedade, podendo a lei determinar as condições do seu emprego ou exploração conformes com a finalidade colectiva.
Tenho presentes as palavras recentes, bem oportunas, de um homem público português que é uma das mais altas figuras políticas e intelectuais da nossa terra - o Sr. Prof. Doutor Marcelo Caetano -, que disse:
A repartição das riquezas tem de ser feita com a maior equidade: através do salário, incluindo nesta designação todas as formas de retribuir e beneficiar o trabalhador pela empresa, quer em dinheiro, quer em comodidades, vantagens e educação, através do imposto e através das obras de interesse público que os ricos devem fundar, sustentar e estimular.
E adiante acrescentou:
Não sou contra a existência dos ricos; mas o que proclamo é o seu dever de empregarem o supérfluo em fundações de utilidade colectiva, em instituições .de cultura, assistência e educação, largamente, generosamente, à semelhança do que os milionários americanos consideram honra ë dever de gratidão para com o público que os ajudou a enriquecer. Se esta transformação de mentalidade se desse e os ricos de haveres materiais fossem - não apegados aos bens terrenos - senhores e não servos do seu dinheiro, beneméritos e não perpétuos beneficiários dos seus concidadãos a questão social estaria meio resolvida.
Esta doutrina, que eu não exporia melhor, é também a doutrina das encíclicas papais, desde Leão X (De Rerum Novarum, Quadragésimo Anno, etc.). Não tem sido outra a doutrina sustentada pelos pontífices. Não é outra a concepção cristã da riqueza.
E o Direito tem naturalmente de evoluir, adaptado às circunstâncias novas, às exigências da sociedade nova.
Numa discussão na Ordem dos Advogados sobre o projecto do Sr. Dr. Sá Carneiro e sobre o parecer da Câmara Corporativa a que ele deu lugar um ilustre advogado, o Sr. Dr. Tito Arantes, enunciou os seus pontos de vista sobre inquilinato, na sua expressão, em dez mandamentos, os quais, como se diz no Catecismo, se encerram em dois, nestes termos:
1.º Garantir ao inquilino a estabilidade total da casa em que habita;
2.º Garantir ao senhorio a remuneração condigna do seu capital.
Salvo o devido respeito, permito-me modificar estes dois mandamentos, ampliando-os e adaptando-os talvez melhor às circunstâncias, desta maneira:
1.º Garantir ao inquilino a estabilidade total da casa em que legitimamente habita e uma renda compatível com os seus recursos e encargos familiares;