16 DE DEZEMBRO DE 1950 199
própria, opinião, dizendo não ter valido a pena trazer aqui o cheiro raposinho das «sebentas», porque as considerações que eu fizera já eram do conhecimento de todos. Folgo com isso, mas cada vez entendo menos como pôde então ler sido levantada esta questão.
Mais incisivo e certeiro, porém, foi o reforço que àquela respeitável opinião veio trazer o ilustre Deputado Dr. Bustorff da Silva quando disse, com o brilho de sempre, que os conceitos por mim expendidos eram «pràticamente do conhecimento de todos que, de perto ou de longe, têm um nível de instrução superior ou igual à instrução «secundária». Ora pois:
Tenho de agradecer a justiça com que me trataram, mas lamento o tempo que perderam tentando abrir uma porta que eu deixara amplamente escancarada. E, pois que eu próprio não tinha dúvidas sobre o justo mérito do meu trabalho, este empenho em minimizá-lo criou-me uma horrível e confrangedora suspeita. Teria eu, desastrado que sou, teria eu feito baixar o nível, o nível da Câmara? E, quando atormentado por esta horrível suspeita ia romper num grande choro bíblico - flevit fletu magno, como conta Ezequiel - (desculpem o latim, mas isto é pràticamente do conhecimento de todos que... VV. Ex.ªs já conhecem o resto), eis que me cai debaixo dos olhos o brilhantíssimo discurso do nosso ilustre colega Dr. Bustorff da Silva. Lendo-o, reconciliei-me comigo mesmo e com a vida, reencontrando a paz do meu atormentado espírito. Os conceitos económico-financeiros expostos por S. Ex.ª com o brilho que lhe é habitual, bem ponderados, não estão afinal acima de todos os que «de perto ou de longe têm um nível de instrução superior ou igual» aos que alcançam diplomar-se no curso médio de comércio. Tirante o brilho com que foram expostos, pode bem dizer-se que fazem parte do cabedal de conhecimentos do comum dos homens que, «de perto ou de longe», subiram àquele grau de instrução, o que, de resto, lhes não tira o mérito.
Quite, pois, comigo e com a Câmara, eu deixara afinal o nível como o encontrara e como o deixou o ilustre Deputado Bustorff da Silva. O nível manteve-se.
O que importava, porém, não era a profundeza ou originalidade dos conceitos por mim referidos, mas a sua exactidão e vigência. Todavia, sobre isso aqueles ilustres Deputados parece não terem tido que fazer qualquer observação ou reserva, porque nada redarguiram.
Permita-se-me que, por esse facto, considere exactos a vigentes tais conceitos e princípios. A não me cegar a vaidade, parece-me, por isso, ter demonstrado sem contestação a necessidade, legalidade e utilidade de organizar e explorar econòmicamente o trabalho prisional.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Há, porém, o problema da concorrência, problema que eu próprio confessei existir e para o qual se não conhece, por enquanto, adequada e perfeita solução. Sobre tal problema irei produzir breves e sumárias considerações, nem originais nem profundas, saiba-se. E porque terei de voltar à «sebenta», se o cheiro raposinho que dela se desprender for mais do que o tolerável, aperte cada qual o seu nariz. Eu talvez venha a fazer o mesmo.
Antes de mais, devemos considerar dois aspectos distintos do fenómeno económico-social da concorrência: um será o da concorrência no trabalho e outro o da concorrência na colocação dos produtos por aquele produzidos.
Vejamos o primeiro aspecto.
Poderá razoàvelmente pôr-se o problema da concorrência no trabalho entre homens livres e reclusos numa sociedade suficientemente evoluída? Penso que não. Entre nós, desde que as penas corporais foram abolidas, o foram-no primeiro pela consciência moral da Nação, antes de o serem pelos preceitos constitucionais ininterruptamente vigentes há mais de um século, o trabalho prisional surgiu como solução indispensável na elaborarão da doutrina penal e transposta daí para a legislação. E não foi só entre nós que se processou aquela evolução de conceitos e fins. Considerando este facto, Kriegsmann pôde dizer, com rara felicidade e exactidão, que «o problema da pena é o do trabalho prisional».
Acresce que se o trabalho é, como já tive ocasião de dizer, um dever moral e legal a que todos, mas todos, livres ou reclusos, solteiros ou casados, do Sul ou do Norte, temos de submeter-nos, como fazer distinções ou estabelecer categorias para dar ou negar trabalho a uns ou a alguns? Se o dever alcança todos os homens, sem qualquer distinção, então a falta de trabalho é um facto socialmente grave e perturbador, quer recaia sobre a população livre, quer atinja apenas a população prisional. Para esta atrevo-me a dizer que é até mais grave, porque o trabalho é um dos meios mais eficazes e directos do seu resgate. A população livre poderá, de alguma sorte, atenuar a falta de trabalho ou pelas migrações internas ou pela, saída para o ultramar ou para o estrangeiro. Os reclusos não, esses têm de ter trabalho no local da reclusão, do qual só o termo da pena os libertará. Não importa que alguns homens sejam assassinos ou ladrões; são homens, e, se têm o dever de trabalhar, em contrapartida têm o direito ao trabalho.
Quanto aos reclusos, a questão tem aspectos particulares, já aflorados, mas que importa acentuar ainda. É certo que os reclusos são condenados, mas, repare-se, não condenados à perdição; pelo contrário, são condenadas, passe o quase paradoxo, à regeneração. Para que a alcancem devem ser trazidos até nós por sucessivas e constantes aproximações morais. Se a pena é também castigo, moralmente só é justa na medida em que possa produzir o bem, em compensação ou reparação do mal causado. A pena não é nem pode ser, em si mesma, um mal para compensar outro mal. Na lei de Deus, ao menos, o mal só se compensa e recompensa com o bem. Se a pena não apontar a este resultado, então será imoral.
Do que deixo dito pode, sem esforço, desprender-se esta conclusão: diante do dever geral de trabalhar não pode falar-se em concorrência no trabalho entre a mão-de-obra prisional e a mão-de-obra livre.
Acentuemos, porém, outros aspectos do problema da reclusão.
A pena é, como se sabe, individual e não se transmite à família do condenado. É esta uma conquista consignada imperativamente na Constituição Política e é também um imperativo de direito natural, universalmente aceite e respeitado. Que eu saiba, só a Rússia não respeita tal imposição.
Este princípio da intransmissibilidade da pena responde não só aos gerais sentimentos de humanidade e generosidade, mas é também e fundamentalmente justo. Simplesmente para que tal princípio se não transforme, na prática corrente, em mera ilusão, há que resolver o problema da família, privada do concurso económico do trabalho do seu chefe natural e legal.
Daqui que surja mais um motivo, e ponderoso, para proporcionar trabalho aos reclusos e, onde este não alcance, apelar para o concurso das várias modalidades assistenciais já montadas e a funcionar.
Por tudo isto há que organizar econòmicamente o trabalho prisional, e os serviços aos quais tal organização incumbe não são apenas responsáveis pela reedu-