19 DE MARÇO DE 1951 675
Dois exemplos, aliás já invocados em conferência pública, bastarão para demonstrar a verdade de semelhante asserto:
Um notário ou um conservador entende dever recusar um acto da seu competência, por entender faltar um documento que reputa essencial. O interessado recorre para o competente juiz de direito, não porque repute ilegítima a exigência de tal documento, mas porque, tendo conseguido esse documento em data posterior à da recusa, pretende utilizá-lo, no uso da faculdade que lhe confere o artigo 1082.º do Código de Processo Civil.
O recurso obterá provimento, mas, porque semelhante resultado importa u improcedência da recusa, em face da letra do referido artigo 1082.º, o funcionário terá de suportar as custas do recurso.
Figuremos outro caso:
Um funcionário entende dever recusar um acto da sua competência. Porque o caso lhe parece duvidoso, não o fez, porém, sem que previamente tivesse buscado esclarecer-se junto do seu director-geral.
O interessado reagiu pela via do recurso hierárquico, mas o seu recurso não obteve provimento, sendo confirmada a recusa.
O funcionário recusante ficou tranquilo e decerto se sentiu honrado por ver que o seu critério mereceu a aprovação da entidade a quem compete, pela lei, a orientação dos respectivos serviços.
Aguardava-o, todavia, uma terrível decepção:
O interessado recorrera para o competente juiz de direito, o processo do recurso correra seus termos sem sua intervenção e até sem seu conhecimento e a final o condenado nas custas foi ele, e não o seu director-geral, que o esclareceu, ou o Sr. Ministro, que confirmou, pela via do recurso hierárquico, a sua decisão.
É bem de ver que o injusto preceito do artigo 1083.º do Código de Processo Civil conduzirá na prática a resultados lamentáveis.
O funcionário timorato, perante a ameaça da condenação em custas e consciente da própria falibilidade, será levado a praticar actos que não deveria praticar ou a deixar de praticar outros que deveria praticar ou a adoptar a posição passiva de nunca duvidar ou nunca recusar, o que decerto afectará o prestígio da instituição que serve e reduzirá o crédito de confiança desta sobre o público.
O preceito que impõe ao funcionário a condenação em custas apenas tem justificação nos casos em que se venha a apurar que aquele agiu com dolo ou má fé ou contra lei expressa, e nunca fora desses casos.
Ora, contra semelhante regime foram produzidas as mais variadas críticas, sendo particularmente aceradas e severas as que visavam o injusto preceito do artigo 1083.º do Código de Processo Civil vigente.
Tais críticas conhecia-as decerto o legislador de 1949; e porque as conhecia e porque as julgou procedentes, entendeu vantajoso e mesmo necessário, ao elaborar a reforma em discussão, rever a matéria dos recursos, tão deficientemente regulada.
Encontramo-nos exactamente a apreciar os resultados dessa revisão.
O problema que ao legislador de 1949 se deparava pode enunciar-se assim:
Deveria facultar-se aos interessados, para reagirem contra as decisões dos notários e conservadores que lhes fossem desfavoráveis, o recurso ao Poder Judicial e cumulativamente o recurso hierárquico ou apenas um desses recursos?
Se apenas um desses recursos, qual deles deveria subsistir?
Adoptou-se a solução do recurso único, dando-se a preferência ao recurso hierárquico, solução que mereceu a concordância da Câmara Corporativa.
O Sr. Carlos Borges: - É mais contencioso e menos administrativo.
O Orador: - A ilustre Comissão de Legislação e Redacção, por sua vez, preconiza o regresso ao regime do Código de Processo Civil de 1939.
E, segundo deduzo da sua proposta de substituição, não busca corrigir os inconvenientes que a prática já assinalou a tal regime, não hesita em aceitar o preceito injusto do artigo 1083.º sobre matéria de custas, e até sacrifica o salutar princípio inovador do artigo 170.º da reforma, aplicável ao recurso hierárquico, único que o legislador de 1949 entendeu manter e reconhecer.
Ora, independentemente das deficiências do regime definido nos artigos 1082." a 1088.º do Código de Processo Civil de 1939, dos inconvenientes que apontei e das situações absurdas e ilógicas a que conduz, defeitos, aliás, remediáveis, se não se preferisse regressar, pura e simplesmente, ao regime do velho Código de Processo de 1876, eu alinho sem hesitações com aqueles que defendem a unidade do recurso e dentro dela concedem a preferência ao recurso hierárquico, isto é, adiro ao regime estabelecido pelo artigo 165.º da reforma em discussão.
Eu penso, Sr. Presidente, que o regime da dualidade de recurso é contrário a alguns dos princípios que tradicionalmente informam a orgânica constitucional portuguesa, assim o princípio da separação das funções e da divisão dos poderes.
O regime da dualidade de recurso é atentatório da autoridade e prestígio do caso julgado, pela possibilidade lamentável, mas inevitável, de serem proferidos julgados contraditórios nas duas vias de recurso.
O regime da dualidade de recurso é até certo ponto desprestigiante para quem se encontra no extremo limite do caminho hierárquico, o Ministro da Justiça, visto que, em regra, das decisões ministeriais recorre-se para o Supremo Tribunal Administrativo, e aqui uma decisão ministerial poderá vir a ser contrariada e até anulada por uma sentença proferida por um juiz de 1.º instância.
O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - Nesse caso, lá teríamos o Poder Judicial invadido pelo Executivo até em questões de direito privado, mesmo de alta indagação.
O Orador: - Não vejo a invasão que V. Ex.ª figura; o que noto é, pelo contrário, a preocupação do legislador no sentido de evitar essa invasão, sem contudo permitir a contrária, pois ambas são, na verdade, indesejáveis; parece-me transparente o propósito de avivai-os limites ou a linha de demarcação entre o judicial e o administrativo, que alguns fingem ignorar.
Finalmente o regime da dualidade de recurso é susceptível de na prática lançar a confusão e a desorientação no espírito do funcionário, que a cada passo terá de escolher entre a orientação que lhe é traçada pelo seu superior hierárquico e aquela que resulta da jurisprudência dominante, por vezes menos afeiçoada ao espírito da instituição, por vezes menos atenta às solicitações dos serviços, por falta de competência técnica especializada da parte daqueles a quem, na via jurisdicional ordinária, incumbe resolver a matéria dos recursos dos notários e dos conservadores.
Arredado, pois, por contrário aos bons princípios - que só estes nos devem orientar em tão delicada, matéria -, o regime da dualidade de recurso, isto é, assente que só recurso judicial ou só recurso hierárquico, ocorre perguntar: mas recurso judicial ou recurso hierárquico?