676 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 88
Reconhecendo, embora, que reveste certa delicadeza o problema posto, não hesitarei em pronunciar-me em favor do recurso hierárquico.
É na verdade o aspecto administrativo que avulta na actuação da entidade ou do tribunal a quem incumba resolver os recursos dos notários ou dos conservadores.
Verifica-se, como muito lùcidamente se acentua no douto relatório da Câmara Corporativa, que na base do differendum a que dá lugar uma recusa ou uma dúvida de notário ou de conservador está essencialmente uma questão de legalidade do acto praticado por um funcionário público, cuja apreciação deve ser feita através do contencioso administrativo.
E não pode «perder-se de vista que os notários e os conservadores - lamento muito sinceramente que não caiba aqui o debate em profundidade do apaixonante e delicado problema da determinação da natureza jurídica das funções dos primeiros - são, em face do direito positivo português, funcionários públicos, e assim, rodízios, engrenagens da grande máquina da Administração, devem subordinação hierárquica e acatamento de orientação a quantos, superintendendo nos respectivos serviços, se encontram em plano superior na grande pirâmide por que pode figurar-se a organização de disciplina dessa mesma Administração.
Eu penso, Sr. Presidente, que às dúvidas que obscurecem o problema e, por vezes, o afastam do seu verdadeiro plano não será de todo alheia a circunstância, puramente formal, de os notários e os conservadores não desempenharem as suas funções no próprio edifício onde está instalado o Ministério da Justiça, como qualquer chefe de repartição, pois, se «assim sucedesse, dificilmente se ousaria sustentar que eles devessem aceitar orientação diferente da que lhes é traçada pélas entidades que superiormente dirigem o Ministério a que estão adstritos e de que dependem.
Neste aspecto não deixa de ser interessante e oportuno lembrar os preceitos que se contêm nos artigos 2.º, n.º 1.º, e 3.º, n.º 3.º, do Decreto-Lei n.º 35:390, de 22 de Dezembro de 1943 que cria, no Ministério da Justiça, a Direcção-Geral dos Serviços de Registo e do Notariado, nos quais se prescreve que compete ao Ministro da Justiça «orientar superiormente todos os serviços de registo e notariais dependentes do Ministério» e à Direcção-Geral dos Serviços de Registo e do Notariado «esclarecer as dúvidas que se suscitarem aos conservadores e notários na prática de actos da sua competência».
Como poderia admitir-se que a orientação traçada pelo Ministro para ser observada pelos funcionários e comunicada a estes através de circulares e dos esclarecimentos prestados pela respectiva Direcção-Geral pudesse em qualquer caso ser contrariada por outra, diversa ou antagónica, proveniente de outro departamento do Governo e imposta aos funcionários por entidades que não têm sobre eles, no que respeita à forma por que hão-de desempenhar as suas funções, poder de superintendência ou orientação?
Definida a minha atitude perante o problema da unidade ou da dualidade de recurso e, dentro do regime da unidade, justificada a minha preferência pelo recurso hierárquico, passarei a considerar num relance as objecções que frequentemente se alinham contra o regime adoptado pelo legislador de 1949, constante do artigo 165.º da proposta em discussão.
Objecta-se que, na hipótese de o Ministro, a quem incumbe decidir a matéria do recurso, confirmar a recusa, a parte não terá maneira fácil de evitar os inconvenientes que lhe pode acarretar semelhante decisão.
O argumento não me parece denso nem de molde a causar viva impressão.
Ou a parte se conforma com o decidido e age ou não em ordem a remover os motivos da dúvida ou da recusa ou recorre para o Supremo Tribunal Administrativo, visto que não é discricionário o poder do Ministro na decisão dos recursos hierárquicos. Na verdade, da decisão ministerial que decide um recurso hierárquico cabe recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, e não raro acontece que este elevado, nobre o digníssimo Tribunal altera ou revoga deliberações ministeriais.
Neste aspecto, posto que não me pareça difícil sustentar que todas as decisões ministeriais que decidem recursos hierárquicos são redutíveis àquelas das quais cabe recurso para aquele alto Tribunal, parece-me vantajoso o aditamento proposto pela Câmara Corporativa no sentido de que expressamente se consigne no artigo 168.º da proposta essa faculdade concedida ao interessado.
Mas, objecta-se, a competência .do Supremo Tribunal Administrativo está definida na lei e a questão posta num recurso de notário ou de conservador pode não caber nos limites dessa competência.
A resposta a esta objecção já a demos atrás, quando acentuámos que a questão posta nos recursos de que se trata - ou, mais exactamente, a única questão que pode ser decidida nestes recursos - é, em última análise, uma questão de legalidade do acto de um funcionário público, logo uma questão cuja apreciação quadra bem à via do contencioso administrativo.
Tenho ouvido afirmar que, na base de um recurso de notário ou de conservador, se insere, por vezes, uma delicada questão de direito substantivo e que, num caso ou noutro, é difícil destrinçar essa questão da outra, que respeita à legalidade do acto de um funcionário público, e a propósito invoca-se a comodidade dos interessados.
Responderei:
Dificuldade de destrinça não é sinónimo de impossibilidade de destrinça; sem dúvida que, por vezes, a questão da legalidade do acto se entrelaça numa disputa de direito substantivo, mas o meio próprio para discutir esta é o do processo ordinário ou sumário, conforme as circunstâncias, e não o do recurso.
Eu penso, Sr. Presidente, que uma das virtudes mais salientes da reforma em discussão, nesta matéria, reside precisamente na transparente preocupação de estremar campos, de destrinçar matérias, de limitar zonas de competência, arrumando para um lado a questão propriamente da legalidade do acto de um funcionário público, cuja apreciação cabe ao contencioso administrativo, e remetendo para outro a controvérsia sobre o âmago da questão jurídica fundamental que, porventura, esteja subjacente.
Exprime bem essa preocupação e a atenção que ao legislador merecem os legítimos direitos e interesses das partes o preceito do § 2.º do artigo 165.º em discussão, onde se lê:
O disposto neste artigo não prejudica o direito de as partes recorrerem aos tribunais para litigarem entre si sobre a validade dos actos e registos em que sejam interessadas.
E não poderei deixar de acentuar, em concordância com o que se pondera no douto parecer da Câmara Corporativa, que há até toda a vantagem em que a entidade a quem venha a incumbir a decisão da questão jurídica fundamental não se encontre vinculada ou comprometida por atitude anterior tomada no julgamento do recurso.