514 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 191
Um código - continua o douto crítico - baseado sobre a mais rigorosa monogamia, instituição à roda da qual, pode dizer-se, gira toda a família e todo o sistema daquele monumento legislativo, como pode adaptar-se a chinas e índios, onde a poligamia é quase uma instituição religiosa, porque, se é verdade que a sua causa real está no temperamento e na libertinagem, que os costumes aceitam, a sua razão o justificação são feitas com a necessidade religiosa de ter filhos que realizem os sacra da família.
Não há adaptações possíveis em tais condições, como veremos. O Código Civil português, fundado na monogamia e considerando o indivíduo a unidade social, não pode adaptar-se a um povo polígamo e que concebe a família como a unidade social, para tirar toda a importância ao indivíduo isolado.
Sr. Presidente: terá de facto algum fundamento sério esta crítica em relação, não direi aos índios, mas aos indianos, ou, melhor, em relação aos hindus de Goa?
No que toca à concepção da família como unidade social, parece que o tempo veio demonstrar que os hindus tinham e têm razão, pois o artigo 12.° da Constituição considera a família a base da harmonia social e fundamento da ordem política e administrativa, pela sua agregação e representação na freguesia e no município. E, nos termos do § único do artigo 19.°, o chefe da família é, perante as eleições das juntas de freguesia, uma espécie de maioral da família hindu.
Quanto à poligamia, só por erro de observação ou de informação é que se pode encontrar a sua causa real, não nas ideias religiosas, mas na libertinagem consentida pelos costumes.
Há de facto ritos religiosos hindus que só podem ser praticados pelo filho varão, sendo os mais importantes aqueles que constituem as cerimónias fúnebres.
Quando não haja filho varão, o marido pode contrair segundas núpcias, antes da dissolução do matrimónio, mas para isso precisa do consentimento da mulher, que só é válido quando ela tenha atingido certa idade.
A religião hindu permite esta prática. Mas é tal o rigor e a pressão da moral sexual na família hindu que as segundas núpcias na vigência do matrimónio são raríssimas e quase se não realizam hoje nos territórios portugueses da Índia, pois a exigência religiosa é satisfeita, como a religião também permite, pela instituição de adoptivo.
Se a causa real da poligamia fosse a libertinagem, mascarada pela religião, neste caso a solução de se adoptar um filho, também com cerimónias religiosas, não teria sido admitida.
Ocorre-me agora fazer a mim mesmo esta pregunta:
A gradual, sistemática e persistente renúncia a segundas núpcias na vigência do matrimónio, dando-se satisfação às exigências religiosas por meio de um adoptivo, não será, porventura, o resultado da reforma dos costumes operada pelos princípios cristãos - que os hindus não repelem - que informam o Código Civil, bem como do estreito convívio dos hindus com os seus irmãos católicos, num ambiente legal e social criado, não só pelo Código Civil, mas ainda por outras leis que regulam as relações entre portugueses no território europeu de Portugal?
Eu creio que sim.
Os portugueses, dotados psicológica e culturalmente de uma vigorosa capacidade para suportar contradições e harmonizá-las, quando se defrontaram em Goa com uma estável sociedade civilizada, equilibraram os bem poucos elementos antagónicos das duas culturas em presença, pelo processo de fusão, de acomodação, de transmissão dos seus costumes, pelo convívio amigo, em suma por uma espécie de osmose espiritual, e enquadraram, na fase mais criadora da sua expansão ultramarina, o milenário sistema social e económico dos goeses na legislação de Portugal, ressalvadas certas particularidades, e algumas de mútua utilidade.
No período iniciado pelo génio de Afonso de Albuquerque, pioneiro da moderna ciência da colonização, a tendência assimiladora revelou-se pela preocupação de converter os naturais ao cristianismo e chamá-los deste modo ao grémio da comunidade lusitana.
É uma consequência natural do carácter religioso da expansão portuguesa.
Contudo ó admirável o facto de Albuquerque se ter antecipado à teoria de colonização que na época ia elaborando a Universidade de Salamanca, distinguindo a evangelização da colonização, fundando esta no direito natural, segundo o qual os próprios reis católicos tinham o dever de respeitar os não católicos como pessoas humanas, no sentido moral do termo.
De modo que, Sr. Presidente, mesmo durante a época do fervor missionário os hindus foram chamados a tomar parte na administração da sua terra, os quais assim contribuíram para que as novas gerações se sentissem felizes com leis e instituições que, sem distinguir entre hindus e cristãos, plasmaram uma sociedade apta a reger-se, no campo social e económico, pelas leis gerais de Portugal, tal como os habitantes do Minho ou do Algarve.
É que a civilização indiana e as suas concepções morais adaptam-se, sem violentar os hábitos hindus, ao tipo universalista do direito europeu, que Albuquerque levou a Goa.
A prova está na Constituição Política da recente República da Índia, que é nitidamente do tipo das constituições democráticas do Ocidente, baseadas na igualdade dos cidadãos perante a lei, no livre acesso de todas as classes aos benefícios da civilização e na interferência de todos os elementos estruturais da nação na vida administrativa e na feitura das leis.
Assim se compreende que, sem forçar diferenças, se tenha podido tornar extensivo ao Estado da índia não só o Código Civil, a Reforma Judiciária, as leis eleitorais, mas até o próprio Código Penal, porque, pelo critério da moralidade e justiça dos naturais, os seus actos maléficos têm o mesmo carácter revelador de temibilidade que existiriam quando praticados por um portuense ou lisboeta.
Isto quer dizer que a população do Estado da índia está, desde séculos, adaptada, no seu próprio interesse, ao direito português e, consequentemente, ao regime administrativo do núcleo central dos territórios de Portugal.
E por isso o seu problema administrativo pode ser posto sempre nos mesmos termos referentes à metrópole.
Com efeito, a circunstância de ter a população, embora composta de 300 000 hindus, 310 000 católicos, 12 000 muçulmanos e 3 000 de outras religiões, a circunstância de ter a população - repito - consciência da sua unidade social e política e uma noção multissecular da possibilidade de fraccionamento do poder e consequente especialização de funções permitiu que os territórios de Goa, Damão e Diu, em que ela se contém, tivessem, desde o primeiro Senado de Goa, uma divisão administrativa e autarquias locais idênticas às da metrópole.
Não existem aí circunscrições nem postos administrativos, mas sim concelhos, que se formam de freguesias, tal como na metrópole.
E, de igual modo, os interesses particulares dos densos núcleos populacionais são representados por câmaras municipais e juntas de freguesia, com grande número