DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 104 482
(...)mentos que lhe conferem afinal a sua personalidade, a considerá-lo nas suas reacções subjectivas perante o embate constante dos sentimentos mais diversos e da influência que sobre ele exercem o meio, a política, as tradições e as paixões, a religião, as propagandas, etc.
É evidente que a estes dois aspectos do âmbito da economia correspondem preocupações diferentes, por definição diferenciada de campos de actuação, e o político e o governante - a não ser que seja um teórico, um sonhador ou um lírico - só pode encontrar no segundo o seu real campo de acção.
Tem de encarar, portanto, o homem, com todas as consequências das suas qualidades e defeitos e no verdadeiro sentido e realismo da sua personalidade humana, como centro principal do problema, seja na actividade da sua luta constante perante a natureza que o cerca, e a qual lhe presta um concurso valiosíssimo, mas limitado e penoso, seja nas reacções da sua personalidade perante o meio social que integra e cuja reacção resultante ele próprio ajudará a estabelecer. Uma população aparece-nos, desta forma e, em consequência, como base de interesse da economia aplicada, e o estado da técnica, a par da limitação dos recursos económicos disponíveis e das formas políticas que procuram a organização indispensável para o seu aproveitamento, determinará, por seu lado, as possibilidades de satisfação das necessidades que se oferecem a uma colectividade.
Deparamos então com certas proposições de questões de carácter universal, que se resumem nas três determinantes básicas duma organização económica no campo social: os bens a produzir e as suas quantidades, os meios e a técnica da sua produção e a sua distribuição.
Ao fim e ao cabo, a forma e os meios de satisfazer, na maioria dos casos, as necessidades do homem isolado e sempre as do homem agregado em grupos, familiares ou não; e o problema confunde-se ou sobrepõe-se, até, a qualquer outro que, de longe ou de perto, seja determinante dessa satisfação.
Sob este aspecto há, assim, um problema fundamental, ou central, de toda a sociedade económica, seja dum estado corporativo ou comunista, seja duma nação civilizada ou duma tribo africana, se não pretendermos que ele o possa ser também dum Robinson Crusoé.
A par, portanto, de problemas mais ou menos importantes de momento, ou específicos, para cada nação, este será o problema n.º l das nossas preocupações, e o qual, se se estende naturalmente no espaço, nunca deixou de dominar no tempo: é tão velho, de facto, como a própria humanidade, mas tem a presença e a frescura dos nossos próprios dias.
Já Confúcio e Mêncio proclamavam que a pobreza descontentava os povos e que uma situação económica satisfatória era condição necessária para a boa ordem social; por isso mesmo, a obtenção dos alimentos e a satisfação capaz de outras necessidades económicas são de há muito consideradas como tarefa principal dum bom governo.
Creio nada mais ser necessário dizer acerca do sentido que ligo à expressão «problema económico português», que melhor se irá, aliás, definindo no decorrer da minha exposição; «aspectos, tendências e caminhos para a sua solução» não passam de simples atributos que o limitam no presente e o pretendem encaminhar para o futuro.
Os indivíduos, ou os agregados familiares, que compõem uma sociedade como a nossa avaliam, na maioria dos casos, do grau de possibilidade de satisfação das suas necessidades através do seu poder de compra, e não há dúvida, portanto, de que um dos dados fundamentais na política económica do governo será o de procurar elevar esse poder de compra, directa ou indirectamente, a um nível que garanta a indispensável cobertura das necessidades principais da população do país.
Há, como é evidente, uma série de problemas afins ou circundantes no campo da produção e do consumo, que não permitem considerar aquela determinante só por si; mas o valor relativo, ou, melhor, os meios através dos quais se torna na realidade possível satisfazer tão natural desejo, toda a série de questões condicionantes dos processos e das limitações que restringem as possibilidades efectivas, não chegam para lhe negar, se não o lugar de primazia, pelo menos o lugar de ponto de partida para uma análise como aquela que me propus fazer.
Começarei, portanto, por aqui.
Há vários processos, mais ou menos rigorosos, mais ou menos falíveis, que nos podem ajudar a determinar o valor provável para o poder de compra médio dum indivíduo, dum agregado populacional ou duma nação ; e, conforme a maior ou menor falibilidade do processo, assim a necessidade duma espécie de coeficiente de segurança se impõe em maior ou menor grau para as conclusões a tirar.
A necessidade da maior cautela na escolha do método é, portanto e por natureza, evidente, e tudo quanto seja uma previsão ou um cálculo à base de dados estatísticos que enfermem de inexactidões ou se apresentem incompletos pode não traduzir o mínimo da aproximação indispensável para deduzir com segurança ou analisar com critério.
De resto, como ainda há relativamente pouco tempo alguém lembrava, com particular autoridade, a gente portuguesa é refractária, por desconfiança insuperável - que, aliás, não é só nossa-, a fornecer as indicações indispensáveis para uma compilação estatística completa; por outro lado, não será ainda entre nós também que as relações extremamente simples entre salários nominais e índices do custo de vida podem servir para encontrar ordens de grandeza que traduzam uma satisfatória realidade.
A determinação dum orçamento familiar-tipo, com base no custo de alimentação calculada em função das calorias necessárias, satisfaz, porém, plenamente e permite, como se verá, uma espécie de controle dos valores estatísticos de que porventura possamos dispor, auxiliando inclusivamente a sua interpretação; desta maneira disporemos duma espécie de padrão, se não mensurativo, pelo menos interpretativo.
Trata-se, de resto, de um processo hoje em dia corrente e que particularmente mereceu até, como método geral e na sua aplicação às coisas portuguesas, o maior apoio na Revue d'Histoire Economique et Sociale, de Paris, tendo levado à referência das suas conclusões na Economie Alimentaire du Globo, de Cépède e Lengellé.
Como observou, aliás, Jean Granié, na crítica do processo foge-se através dele ao simplismo perigoso daquelas relações que atrás referi, antes se podendo procurar até a constituição desse orçamento familiar-tipo, concebido em função das calorias necessárias e variando segundo os hábitos de cada país e as necessidades alimentares da sua gente.
O primeiro passo para o estudo do problema económico português será, portanto, o da determinação das possibilidades da sua alimentação, cuja importância na política económica não é preciso encarecer; de facto, se um dos principais objectivos da política económica, no momento actual, é o da estabilidade ou baixa de preços para o consumidor e o da estabilidade ou alta de rendimentos para os produtores agrícolas e não agrícolas, não se pode o Estado desligar da preocupação (...)