912 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 118
Não será por meio de uma eleição por sufrágio indirecto e orgânico que traduza, tanto quanto possível, a vontade de todos os elementos estruturais da Nação real e assegure as maiores probabilidades de acertar na escolha do homem capaz de nos governar com prudência e, podendo ser, do homem que possua em anais alto nível essas qualidades médias que Salazar enumera mima página clássica e memorável sobre as virtudes de um chefe do Estado ou será por uma eleição com sufrágio directo, universal e inorgânico, precedida, necessariamente, de uma campanha eleitoral, que, como a experiência nos tem mostrado, em nada esclarece e elucida o eleitorado, antes o confunde e desorienta no clima emocional que sempre cria ?
A minha resposta a estas perguntas não pode ser senão de inteira concordância com o sistema eleitoral da proposta do Governo agora em discussão.
Na verdade, o processo mais eficiente para a representação da vontade nacional parece-me bem que será aquele em que o colégio eleitoral seja constituído por membros desta Assembleia, como representantes legítimos de interesses gerais da Nação, pelos membros da Câmara Corporativa, em representação de interesses pluralistas, diferenciados e organizados de ordem económica,, social, cultural e espiritual, e ainda pelos representantes dos interesses das famílias e das autarquias locais, eleitos nos termos que constam da aludida proposta do Governo.
Não sei se haverá ainda quem sinceramente e de boa fé possa sustentar que é mais seguro e eficaz escolher no meio do tumulto, da barafunda, e da confusão do que numa atmosfera de paz, de serenidade e de reflexão um Chefe de Estado.
A despeito de todos os males que todos já conhecemos, graças a Deus, temos sabido escolher entre candidatos de sinal contrário o homem prudente para nos governar.
E a verdade também é que a eleição pelo sufrágio directo do cidadão eleitor, no caso em análise, é manifestamente incompatível com os princípios orientadores da nossa organização política de Estado Corporativo.
Quanto à proposta de substituição da província pelo distrito como autarquia local, creio, em face da experiência feita e das razões invocadas no parecer da Câmara Corporativa, que tal proposta é também de aprovar.
Sr. Presidente: entro agora propriamente na justificação do meu projecto.
A Câmara Corporativa considera que os dois pontos a que ele se restringe - a garantia da fiscalização jurisdicional da legalidade da Administração e a garantia da fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das normas jurídicas - são dignos, pelo seu relevo, de constituírem objecto de um projecto de revisão constitucional.
Também disso me convenci. Confesso que me surpreendeu que a Câmara (Corporativa o desaprovasse totalmente, sem ao menos sugerir qualquer emenda que julgasse conveniente.
Como se trata de um assunto estritamente jurídico, não me dispenso de fazer as definições de alguns conceitos fundamentais para a demonstração do mexi ponto de vista e melhor esclarecimento da Assembleia, a quem peço desculpa desde já pela aridez com que certamente tratarei deste assunto. Mas, no entanto, e para não maçar, esforçar-me-ei por ser tanto quanto possível breve e preciso.
A Constituição, no seu artigo 4.º, impõe como um dos limites à soberania do Estado, na ordem interna-o direito.
E por direito devemos entender aqui não só o positivo, que o Estado cria, mas também o natural, que lhe é anterior e superior.
Segundo o n.º 1.º do artigo 6.º, «incumbe ao Estado promover a unidade e estabelecer a ordem jurídica da Nação, definindo s fazendo respeitar os direitos e garantias impostos pela moral, pela justiça ou pela lei, em favor dos indivíduos, das famílias, das autarquias locais e das outras pessoas colectivas públicas ou privadas».
Daqui se infere desde já que o Estado Português é um verdadeiro estado de direito, não no sentido da fórmula de Kant, para quem o Estado tinha como fim exclusivo a custódia do direito - custos justi -, mas no sentido de que ele se subordina ao direito, deve operar fundado no direito e na forma do direito, de modo que cada um dos actos que pratique tenha por fundamento a lei.
Na verdade, o Estado é um organismo activo, que para a realização dos seus fins essenciais, que são a justiça, a segurança e o bem comum da colectividade, por forma a consubstanciá-los na ordem, que é; afinal, a harmonia de todos os elementos estruturais da Nação, tem, necessariamente, de desenvolver uma certa actividade, que se traduz em funções diferentes dos órgãos que o constituem: a função governativa, a função judicial e a função administrativa.
A função governativa, segundo a doutrina que adoptamos, por nos parecer a mais consentânea com as realidades políticas e jurídicas do Estado Português, - consiste na actividade dos órgãos superiores do Estado - Presidente da República, Governo e Assembleia Nacional, esta apenas quanto à sua actividade legislativa, visto que legislar é já, em certa maneira, governar -, os quais livremente definem as normas do direito positivo, fixam os objectivos a atingir pelo poder político de harmonia com as circunstâncias e escolhem os meios a utilizar para a realização de tais objectivos. (Vide Prof. Marcelo Caetano, Lições de Direito Constitucional, p. 123.).
A função judicial é a que exercem os tribunais como órgãos da soberania e tem por fim, essencialmente, declarar o direito certo e aplicá-lo aos casos concretos.
A função administrativa é a que agora mais nos interessa focar para a justificação do ponto que considero de real importância do meu projecto, isto é, o da garantia da fiscalização jurisdicional da legalidade da Administração - traduz-se em certa actividade dos órgãos ou agentes da Administração, actividade essa que consiste em promover a realização de interesses colectivos, os quais, por vezes, a interferirem com os interesses dos particulares.
Esta interferência pode originar conflitos e suscitar litígios, nos quais a Administração aparece em pé de igualdade com os particulares, o que já não acontece com os actos do Governo no exercício da função governativa, em que a vontade é autodeterminada.
Esses litígios são decididos por um órgão com poderes jurisdicionais, ou seja, entre nós, por um tribunal do contencioso administrativo.
E tudo isto acontece em virtude de quê?
Em virtude do chamado - princípio da legalidade, hoje dominante no direito administrativo e corolário do conceito de estado de direito.
Este princípio, cuja definição se deve ao eminente jurisconsulto francês Léon Duguit, consiste no seguinte:
a) No estado de direito nenhum agente do poder público poderá tomar decisões que interfiram com interesses alheios de indivíduos ou grupos senão em virtude de uma norma jurídica anterior e em conformidade com o comando dessa norma;