976 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 122
sentido de «etnia». Ora na realidade o quê a Enciclopédia explica é o seguinte: «Não faltam pessoas cultos que alargam o conceito de raça ao ponto de confundirem (reparem VV. Ex.ªs no termo!), de confundirem o significado desta com os de expressões como «povo», «etnia», etc.
Logo, não acha admissível a equivalência das palavras em pessoas cultas. O que acha é confusão. E como a Constituição se dirige a pessoas cultas, não acha admissível tal emprego, mas sim inadmissível.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: -O parecer cita a p. 187. Mas se o ilustre relator virasse a folha e continuasse a leitura na página seguinte, verificaria que no mesmo artigo se acrescenta: «Embora não consideremos a raça uma entidade zoológica puramente física e somática destituída de qualquer correspondência com alguns elementos psicossociais, nem por isso deixamos de reconhecer que na prática a sua definição assenta sobretudo (ou quase) em caracteres físicos e somáticos, e entre estes especialmente em caracteres morfológicos e anatómicos».
Na realidade, há uma grande porção de termos que tom sido criados a partir do século XIX pelas necessidades de introduzir a devida precisão nos estudos em que se subdividiu a ciência antropológica nascida nos fins do século XVIII. Assim é em todas as ciências. Às palavras, que ao princípio abrangem uma certa extensão, passam a perdê-la, ganhando em profundidade o que perdem em amplitude. È os estudos que dentro da ciência se especializam dão origem a novos termos que acabam por modificar, por via de redução, o sentido dos primeiros.
Assim é que, a partir do termo «antropologia», nascido no século XIX para designar a ciência que se começava a desenvolver para o estudo das raças, se foram desdobrando os estudos e multiplicando os termos, precisando os diversos aspectos com as seguintes designações: bioantropologia, antropologia psíquica, sociológica, histórica, linguística, cultural e religiosa; etnografia e etnologia (para abranger e separar todos os aspectos de ordem psicológica); folclore, antropogeografia, biotipologia, etnia...
Notemos desde já que «etnologia», sob o ponto de vista etimológico, é o estudo dos «povos», e não das «raças». E que «etnia» é naturalmente o termo incluído na palavra «etnologia» para designar a substância sobre que incide esta ciência. Não se trata de um termo novo, pois de há muito se encontra incluído nas palavras «etnologia» e «etnografia», que afinal desta raiz são derivadas.
É aceitável que dentro da linguagem comum, que não pode acompanhar a linguagem especializada, os termos permaneçam muito tempo dentro das ideias gerais. Mas não será decerto a uma Câmara Corporativa, cuja razão de ser é o constituir-se por motivos de ordem técnica, que competirá repudiar o vocábulo técnico, impedindo que se dê um significado preciso à linguagem técnica jurídica e evitando interpretações e comentários inconvenientes até sob o ponto de vista sentimental, o que pode ser altamente melindroso em assuntos desta transcendência.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-Explica o parecer que o termo «etnia» tem o defeito de não ser de uso corrente, que é como quem diz em linguagem comum: um termo difícil. Eu não acho. E em breve direi porquê. Nem me parece de bom critério sacrificar a precisão da linguagem, em documentos desta natureza, em homenagem a insuficiência dos leitores de cultura medíocre, poupando-lhes até o trabalho de se elucidarem consultando um dicionário.
O Sr. José Sarmento: - Muito bem!
O Orador: -Citarei a propósito as palavras de Lapparent, que na obra já citada parece antever esta observação da parte de alguém (que não certamente de uma Câmara Corporativa). É justamente ao definir a palavra «raça» que ele considera a critica feita ao emprego de palavras techniques et díficiles. E explica: «Às vezes abusa-se, concedo. Mas há nisso uma vantagem incontestável: termos precisos, bem definidos, permitem saber de que é que se fala. Portanto, se falamos de «raça», precisamos, absolument, de definir o que entendemos por este termo».
Pode ser que para substituir a palavra «raça» se encontre alguma que se julgue preferível. Pareceu-me, porém, esta a mais naturalmente aconselhável, por ter já existência virtual na nossa língua há tanto tempo como a palavra «étnico», como substantivo essencial e preexistente ao adjectivo. Da mesma maneira se encontra nas palavras «etnografia» e «etnologia», como palavra portuguesa derivada de étimos e designadora do objectivo destas ciências.
Por isso a escolhi como a mais adequada e justificável para designar a comunidade humana que, independentemente dos caracteres antropológicos, cada vez mais variáveis, se constituiu numa unidade política e, mais do que isso, nacional, adoptando sentimentos patrióticos irmanizantes, mercê de uma comunhão de interesses e simpatia afectiva. Acresce ainda a circunstância de já ter sido, depois de Regnault, introduzida na literatura cientifica internacional. Se houvesse, porém, de escolher uma palavra mais saborosamente portuguesa, escolheria «grei».
Este cuidado da definição dos termos poderia aliás deixar de se impor de forma tão premente antes de a palavra «raça» ter dado origem a uma nova doutrina de carácter exclusivista, que pretendeu ser ao mesmo tempo filosófica, religiosa, e criadora de uma nova mística anti-cristã.
Ora, podemos afirmar que, bem vistas as coisas, foi justamente a indiferenciação entre «raça» e «etnia» o que deu lugar ao racismo.
Os seus erros foram estudados desde as suas origens e postos a nu, entre tantos outros, por Ernest Seillière, secretário perpétuo da Academia de Ciências Morais e Políticas de França, no seu trabalho Les Origines Philosophiques et Religieuses du Racisme, e por Robert d'Harcourt, professor da Faculdade de Letras de Paris, em Le Racisme dans la Vie, L'Ame de la Jeunesse e La Religion du Sang. Isto para não citar muitos outros trabalhos que se ocuparam do racismo e através dos quais se pode verificar que, no fundo da questão, foi o confundir-se o valor da palavra «etnia» com o da palavra «raça» o que levou às concepções do racismo.
A mística racial principiara com o francês conde de Gobineau, em 1854, e com o inglês Houston Stewart Chamberlain, autor daquela notabilíssima e sedutora obra sobre A Génese do Século XIX. Foram eles quem introduziu as concepções racistas na Alemanha, apesar de toda a prudência de Chamberlain no que respeitava ao valor da antropologia somática, e até da sua descrença no valor das raças puras. De resto, a ideia de raça é nele muito sui generis, pois elas se sucederiam num devir de raças neoformadas no próprio corpo da nação, enquanto as primeiras se abastardariam, dissolvendo-se no caos étnico.
De 1854, data em que surgiu ô racismo de Gobineau, até Hitler e ao Prof. Gunther, designado por «papa do Rassenkund» (ciência das raças), e a Rosenberg, vão