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692 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 168

Na parábola de Jesus, não foi o rico avarento lançado no Inferno só porque nem as migalhas que sobejavam da sua lauta mesa as dava ao pobre Lázaro?
Quão longe está deste conceito a definição vincoladamente individualista dada pelos Romanos ao direito de propriedade: Ius utendi, fruendi et abutendi de re sua, definição aceite pelos civilistas até no sentido pejorativo de «abusar», que para o clássico jurista romano significava «consumir»!
A propriedade privada, se não é uma função social em si mesma, tem na sua essência uma função social a desempenhar tão forte que não realizá-la chega a ser um crime contra a sociedade.
Por esta razão, o Poder Público tem o direito e o dever de intervir na distribuição do supérfluo das riquezas em favor do bem comum, quando o proprietário o não faz voluntariamente.
O cardeal Caetano, no século XVi, tempo em que o problema social se punha quase só em relação aos pobres através da esmola, escrevia:
Não será difícil afirmar que quem tem o supérfluo e não o quer distribuir espontaneamente nos indigentes possa ser constrangido pela autoridade a socorrer os pobres. Por isso pode o príncipe, por dever, para que a justiça seja observada quanto às riquezas, distribuir ele próprio aos pobres aquele supérfluo que o rico não quer dispensar, subtraindo no rico indigno aquela distribuição das riquezas que lhe estaria confiada ...
Faz injúria aos pobres quem não distribui o supérfluo, uma injúria que o príncipe, guarda do justo, pode e deve eliminar por dever, quando seja evidente a falta.
Assim a intervenção da autoridade transformaria a obrigação de justiça social, confiada ao critério e iniciativa do possuidor, em obrigação de estrita justiça legal.
«É necessário - determina a Quadragésima Ano - que esta justiça (social) seja verdadeiramente eficaz, constitua uma ordem jurídica e social a que toda a economia se conforme ... A autoridade pública pode com maior cuidado especificar, considerada a verdadeira necessidade do bem comum e tendo sempre diante da vista a lei natural e divina, que coisa é ou não licita aos possuidores no uso dos seus bens ...».
Mas logo adverte Pio XI que a autoridade «não pode usar arbitrariamente de tal seu direito; porque é necessário permanecer intacto e inviolado o direito natural da propriedade privada ou da transmissão hereditária dos próprios bens».
Pio XII, chamando à atenção para «a indestrutível exigência» pela qual «os bens criados por Deus para todos os homens cheguem com equidade a todos segundo os princípios da justiça e da caridade ...», diz que fica «à vontade humana e às formas jurídicas dos povos a regular mais particularmente a actuação prática».
na 29.ª Semana Social Italiana, Enrico di Rovasenda esquematizava a intervenção do Estado, quanto ao supérfluo, do seguinte modo:

1) O Estado deve estimular a operosidade dos bens económicos, impor-lhes taxas quando sejam capazes de rendimento, para que também esses contribuam para o bem nacional, e até expropriá-los se for necessário, com uma proporcionada indemnização;
2) O Estado deve impedir a utilização dos bons para fins socialmente nocivos e deve proibir a produção de bens imorais;
3) O Estado deve prosseguir uma política geral que impeça a acumularão de riquezas nas mãos de poucos, que, no dizer de Pio XI, gera três espécies de lutas: para o predomínio económico, político e nacional. A acumulação excessiva de bens ... gera novas baronias nocivas à independência do Poder Público e ao bem de todos;
4) O Estado deve promover a distribuição dos bens a favor de todos os indivíduos e das classes, e, quanto possível, o acesso de todos à propriedade, tendo especial cuidado dos mais humildes;
5) O Estado não tem, por si função de procurar e organizar o trabalho com o supérfluo dos cidadãos; isto pertence à iniciativa privada. Só quando esta não cumpra a sua obrigação é missão do Estado intervir. É aliás normal dever do Estado ordenar a sociedade de um modo favorável ao trabalho, atento o valor económico, moral e social do mesmo trabalho;
6) O Estado tem o dever de tirar do supérfluo quanto seja necessário para a assistência social conforme à dignidade e liberdade da pessoa humana;
7) Antes de promover um elevado teor de vida acessível a poucos e negado ao maior número, o Estado deve favorecer uma distribuição de bens, especialmente a favor dos humildes, mais equitativa e universal.

O supérfluo de muitos seria a riqueza de todos; se cada um de nós cumprisse com o dever que lhe impõe a consciência na administração do que possui, deixaria de haver na sociedade compartimentos estanques, para existir uma grande família ligada pelos laços fortes da caridade cristã.
As limitações, justas e prudentes, que o Estado venha a fazer ao uso das riquezas servem até de garantia das mesmas e de segurança para os seus possuidores.
«Quando a autoridade pública concilia o direito de propriedade com as exigências do bem comum, longe e mostrar-se inimiga dos proprietários, presta-lhes benévolo apoio; de facto, fazendo isto, impede eficazmente que a posse particular dos bens, estatuída com tanta sabedoria pelo Criador em vantagem da vida humana, gere desvantagens intoleráveis e venha assim a arruinar-se; não oprime a propriedade, mas defende-a; não a enfraquece, mas reforça-a» Quadragésimo Ano).
Aplica-se aqui o prolóquio latino: serva ordineu et ordo serrabit te.
E qual será a obrigação do proprietário quando não existam ou não sejam suficientes as normas jurídicas que determinem o emprego do supérfluo? A que lhe impõe a lei natural e que o torna mais ou menos, conforme as necessidades da comunidade e o quantitativo do próprio supérfluo, responsável perante Deus pela miséria que teria podido minorar.
Um dia ser-nos-á pedida couta da nossa administração, como ao servo do Evangelho, sem que possamos fugir à suprema fiscalização das páginas da nossa alma. Em frente das autoridades terrenas ainda se pode ocultar muita coisa, viciando números, escondendo ganhos; no tribunal divino toda a escrita estará patente, e não há sequer possibilidades de enganos involuntários ...
Pode parecer a alguém que a doutrina exposta tira todo o incentivo ao investimento de capitais e paralisa a vida económica dos povos, por isso que uma boa parte dos lucros - objectivo de todo o negócio - deve ser distribuída.
Os princípios que regulam a justa repartição das riquezas não pretendem limitar os lucros lícitos, mas torná-los produtivos em favor do bem comum. Não é um crime, ser rico e mais rico, contanto que as leis divinas e humanas não sejam violadas e se use do supérfluo em movimentação socialmente útil.