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3236 I SÉRIE - NÚMERO 86

Assim o Governo mais uma vez em prejuízo de todos e de tudo desrespeitou a Assembleia da República. Congratulamo-nos porém, desta vez, com o procedimento do Grupo Parlamentar do PS que permitiu desbloquear a situação grave criada por um pobre decreto-lei torturado, passado pela mesa censória periclitante e confusa da coligação.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo: A ratificação pedida pelo MDP/CDE do Decreto-Lei n.º 63/85 deve-se a três ordens de razões: razões de ordem formal de onde resultam contradições, deficiências e ambiguidades de nomenclatura; razões de execução prática de um Código que visa a defesa dos direitos e que deve ser por isso coerente, exequível e fonte de equilíbrio entre os diferentes actores que nele entrarão no desempenho de vários papéis; e, finalmente, por razões de ordem política social e cultural que pela sua relevância abordaremos de imediato.
Referimo-nos, evidentemente, ao já célebre artigo 72.º em que expressamente se afirma que: «os direitos reconhecidos aos autores não tolhem aos poderes constituídos a faculdade de permitir restringir ou proibir, nos termos legais, a circulação e representação ou a exposição de qualquer obra quando o interesse público o exigir».
O interesse público é quase como o «dedo de Deus», ao qual Ramalho Ortigão dizia atribuírem-se as maiores patifarias. E a consciência colectiva expressa pela voz dos artistas, dos autores, dos editores, e da quase totalidade desta Assembleia tremeu ao ouvir tais conceitos e sobretudo ao ver abrir-se de par em par as portas, à arbitrariedade do Poder. O pintor Fernando de Azevedo escreveu mesmo, sensatamente, o seguinte que me permito citar: «O que os políticos não sabem ou não querem saber, até os que têm obrigação de o saber, é que, tarde ou cedo, a víbora censória se torna mais incómoda que útil e pode mesmo envenenar a mão do dono.»
O Sr. Ministro da Cultura tentou retirar o peso significante deste artigo, dizendo que ele era apenas uma emanação lógica da Convenção de Berna.
Isto é tentar defender o indefensável, e tentar tolerar o intolerável. Porque se por hipótese absurda a Convenção de Berna nos obrigasse a legislar nesse sentido, a opção do Portugal democrático só poderia ser uma, a desvinculação imediata de tal Convenção.
O aparecimento do artigo 72.º não é em nenhum caso admissível, a leitura política, cultural e social que dele fazemos é extremamente grave. A existência de tal artigo humilhou os intelectuais portugueses, porque «vítima das malhas que a coligação tece», neste decreto «jaz morto e apodrece» um passado de luta contra o obscurantismo, a que o 25 de Abril deu grande dinâmica e grande projecção.
A liberdade e o seu espírito foram fortemente atingidos se não pela acção deste decreto que esta Assembleia impedirá mas pelo seu impetuoso e agressivo aparecimento.
E de tal modo ele é grave, vai contra o contexto social, à mercê da arbitrariedade de um poder em roda livre, divorciado dos interesses do País, que actuou como pedrada no charco, funcionou como alerta à consciência livre e neste momento ele é para muitos incautos um referencial concreto de revolta.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo: Se o Sr. Ministro Coimbra Martins não tivesse uma vida inteira dedicada ao estudo da geração daqueles que a si próprios se intitularam «vencidos da vida» porque os seus ideais se encontravam tão afastados do presente contemporâneo que por eles tiveram de lutar até à exaustão; se o Sr. Ministro não fosse um especialista dessa geração cuja luta tem perpetuado através dos seus estudos, correria o risco de lhe ser aplicável, neste momento, a frase de Antero de Quental na carta ao Duque d'Ávila, quando este mandou encerrar as Conferências do Casino também por manifestas razões de «interesse público»: «V. Ex.ª ficará na história apenas por ter encerrado as Conferências do Casino.»
Isso não acontecerá. V. Ex.ª tem felizmente outros motivos positivos para ficar na história da literatura, e o artigo 72.º, que consentiu incluir num decreto assinado pelo seu nome literariamente responsável, será felizmente apagado por esta Assembleia.
Assim concretamente se entenderá as vantagens do funcionamento democrático dos órgãos de soberania. Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo: Há ainda razões de ordem histórica e cultural que levam a repulsa do MDP/CDE ao facto de o Governo ter recorrido à Convenção de Berna para criar o artigo 72.º
De facto, a nossa adesão à Convenção de Berna, 24 anos depois da sua existência, foi um acto de libertação e dignificação intelectual que entusiasmou o 1.º Governo Provisório da República, em 1911; esse acto de adesão traz a assinatura do Presidente da República, então Teófilo Braga, ela representa a alegria da abertura às relações internacionais e expressa no seu intróito um hino à nossa condição de país que acaba de conquistar a liberdade. Afirma-se em tom entusiástico:

[...] assegurar a tais produtos da inteligência e da emoção a protecção recíproca nos vários países é caminhar com passo agigantado no caminho da cultura universal e contribuir para o estreitamento cada vez mais completo e firme das relações internacionais, base segura e garantia certa da continuidade da civilização.
Foi este o espírito da adesão à Convenção de Berna e deveria ter sido o mesmo espírito de liberdade e de reencontro que deveriam ter presidido à feitura do Código do Direito de Autor, em 1985.
Infelizmente assim não aconteceu, o Governo entendeu dar força de lei à disposição do artigo 17.º da Convenção de Berna que abre a possibilidade de adesão àqueles países em situação política inversa da nossa. Diz-se no seu formulado:

[... ] as disposições da presente Convenção não podem prejudicar em quer que seja o direito que pertence ao governo de cada país da União de permitir, vigiar, proibir pelas medidas legislativas ou de política interna, a circulação, a representação, a exposição de qualquer obra ou produção a respeito da qual a autoridade competente tiver de exercer esse direito.
Está inerente ao espírito da Convenção fazermos esta pergunta: como teria sido possível sem esta disposição mantermo-nos na Convenção de Berna, durante o fascismo, com a nossa policia política bem organizada, actuante e com censura prévia e repressiva?