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12 DE JULHO DE 1989 5037

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A ideia de uma autoridade sem limite repugna à nossa consciência.
Daí que as aflorações de poder absoluto que a História regista nunca tenham beneficiado da resignação dos homens.
Mesmo quando o poder buscou legitimação no divino, ou absolutizado foi julgado eterno, houve Espartacus, houve Brutus, houve Cristos, houve povo que se ergueu e ousou olhar nos olhos os seus senhores.
Desde a democracia grega e a república romana e, sobretudo, desde a construção do Estado moderno, a pedra de toque das formas de governo foi a preocupação de impedir que o poder se torne abusivo.
Pedra a pedra, um edifício foi erguido para impossibilitar o arbítrio.
São, entre outras, pedras desse edifício: a existência de um direito superior ao Estado; sistemas de fiscalização do acatamento, pelo Estado, do corpo de leis em que esse direito se traduz; o reconhecimento e a crescente sacralização de um corpo de direitos fundamentais do homem; a subordinação dos governantes ao seu próprio estatuto; um sistema de responsabilidade criminal e civil dos governantes e de garantia de efectivação dessa responsabilidade; o contencioso de anulação dos actos do poder; o regime de eleição - de preferência directa e universal - dos mais influentes órgãos de poder; formas de descentralização, autarcisação e regionalização do poder; o sistema de dissolução das assembleias de natureza electiva; a atribuição de um complexo de direitos às oposições; o reconhecimento - jurídico ou de facto - da existência de contra-poderes: sindicatos, mass media, etc; a compartimentação da autoridade, traduzida na clássica separação dos poderes.
Outras haverá. E destas mesmas, só tomarei a última, já que o tema que nos ocupa tem a ver directamente com ela.
Pode considerar-se separado um poder soberano de que outros depende em aspectos condicionantes da sua autonomia?
É separado e pode ser soberano um órgão de poder que não é autónomo?
Do que se trata é de sermos ou não recusarmos a ser coerentes.
Por uma destas aberrações que a inteligência repele, o novo regime político português veio a caracterizar o orgão de soberania que o Presidente da República é em termos de significativa ponderação da competente presidencial, relativamente às competentes parlamentar e governativa, de passo que um perverso entendimento desse facto veio a permitir a sua sujeição administrativa e financeira de um órgão que dele depende.
Eis no que a aberração fundamentalmente se traduz: o Presidente da República é um dos dois órgãos de soberania directamente eleito pelo povo; o Governo é um dos dois órgão de soberania que o não são.
A Assembleia da República também é directamente eleita pelo povo. Apesar disso, o Presidente pode dissolver a Assembleia, esta não pode destituir o Presidente.
O Presidente da República nomeia o Governo, podendo ainda demiti-lo sempre que considere en causa o regular funcionamento das instituições.
O Governo colegialmente, e o Primeiro-Ministro, individualmente, respondam perante o Presidente da República.
O Presidente da República declara o estado de sítio e o estado de emergência, declara a guerra e faz a paz.
O Presidente da República intervém no processo legislativo para promulgar ou vetar as leis e os decretos--lei e para deliberar sobre a efectivação de referendos.
Apesar disto e do mais, o Presidente da República depende institucionalmente do Governo no que se refere à gestão administrativa e financeira do exercício do seu múnus e dos seus serviços de apoio, e cumulativamente do Governo e da Assembleia da República no que diz respeito à organização destes serviços.
A Assembleia da República e o Governo detêm poderes exclusivos de auto-organização. A Presidência da República padece do handicap de hetero-organização. Quem diz quais e quantos funcionários devem apoiar o Presidente da República, é quem de uma maneira ou de outra politicamente dele depende.
Em matéria de orçamento, a Presidência da República vê passar os milhões!
Cabe ao Governo propor e à Assembleia aprovar o Orçamento do Estado, que como se sabe é unitário. Apesar disso - e muito bem - a lei orgânica da Assembleia da República avocou o direito de autopropõe, sem prejuízo do direito de o aprovar, o seu orçamento privativo.
Intrometeu-se também aqui a mencionada aberratio, e vá de sujeitar de facto o Presidente da República à minorização de uma equiparação por baixo: a Presidência da República vem sendo, para o efeito, equiparada a qualquer outro serviço não autónomo do Estado, uma espécie de direcção-geral... soberana!
Daí que o Presidente canaliza a sua proposta de orçamento para o departamento competente do Ministério das Finanças, o que se não imagina sem diálogo institucional prévio e crítico da parte dos técnicos deste ministério.
Com tal cordão umbilical à nascença, já não espanta a sequela - embora o facto estarreça! - de ficarem sujeitas a autorização ministerial despesas de valor superior a certo montante - aliás irrisório! - de regressarem ao universo orçamental os saldos de exercícios findos; enfim de ter de ser cumprida, com o rigor burocrático do costume, a conhecida via sacra em matéria de execução orçamental!...
E no entanto são mais do que os cogumelos no campo, quando chega a Primavera, os organismos administrativos dotados da autonomia administrativa e financeira que o Presidente da República não tem!
Um coco-bichinhos, desses que roem com paciência a madeira do jornal oficial, concluiu que ultrapassou as duas centenas a contagem dos serviços administrativa e financeiramente autónomos.
E a tendência é para o reforço, a ajuizar pelo recente diploma relativo à autonomia das Universidades!...
Eis pois que se não trata de algo que repugne ao sistema, antes de uma prática que o sistema banaliza.
E por falar em repugnância, repugna ao Direito Comparado que a um órgão de soberania se recuse o direito de auto-organização. Tem-o entre nós o Governo. Alguém dispõe aí de uma boa razão para que o não tenha o Presidente da República?
Repugna ao Direito, comparado e sem comparação, que o conceito de soberania surja na prática temperado por situações de dependência, ou seja, de algo que não cabe no conceito.