9 DE NOVEMBRO DE 1990 265
damentação conhecida, talvez seja de assumir que, politicamente, começou por onde deveria ter acabado.
Criou-se uma expectativa exigente na juventude; averiguaram-se formas de preencher o contingente com recurso a várias espécies de vínculo; passa-se pela análise do conteúdo da prestação do serviço, criando um ambiente emocional, derivado dos riscos inaceitáveis demonstrados pelos acidentes anuais; e finalmente aborda-se o sistema de forças e a eventualidade da profissionalização, tudo acompanhado de exercícios sobre os custos. Talvez não seja ousado sugerir que o percurso deveria ter sido inverso e que isso impediria que, nesta matéria, se desenvolvam escolas de pensamento, guiadas por bandeiras partidárias, quando era, certamente, melhor que a bandeira fosse apenas uma e a mesma.
Existem hoje condições mais favoráveis para abordar serenamente este problema do que existiam ainda na data em que foi votada a Lei de Defesa Nacional, porque então, na observação plausível de alguns, estava presente uma prevenção fundada contra aquilo que Harold Lasswel chamou o Estado-Guarnição- uma forma de militarismo que aponta para uma organização onde a liderança militar está presente na gestão do poder. Não se descortina qualquer militarismo, na forma interna que republicanos e socialistas denunciaram pela primeira vez em França, no Segundo Império. Parece indiscutível que as nossas forças armadas desempenham, com autenticidade, as três funções clássicas: representação dos interesses institucionais, em função do encargo de protecção e defesa do território nacional e dos cidadãos, a função de conselheiros do poder político e a função de executores das opções políticas que o poder civil livremente faz.
E aqui, à margem dos preceitos constitucionais, surge a primeira questão processual: que conselho deram as forças armadas nesta matéria em função das opções políticas cuja execução lhe tiver sido assinada? O relatório da comissão dá notícia desta dificuldade, porque os estudos, se existem, são sigilosos, mas, sem eles, não se darão passos seguros. Os autores indicam, frequentemente, que as forças armadas fortalecem as suas posições, recorrendo à competência e à invocação do top secret. Neste caso, a observação tem de dizer respeito ao próprio Governo, embora não tenha qualquer lei que lhe defenda o segredo processual, carecendo de fundamento para recusar ao Parlamento os elementos de que disponha.
Parece necessário evidenciar ainda que a função de consulta depende das opções políticas cuja execução tiver sido cometida às forças armadas, e não é de supor que lhe possam ser comunicadas, nesta data, mais do que hipóteses, porque falta a revisão do conceito estratégico de defesa nacional.
É justo tomar evidente que o Partido Socialista exibe uma filosofia completa nesta área, visto que tem uma proposta de conceito estratégico da defesa nacional, e o seu pensamento desenvolve-se a partir dessa posição fundamental. Mas a proposta e a dele, Partido Socialista, não é a que vincula o Estado, e não pode, assim, concluir-se com qualquer segurança a respeito das propostas que adiantou no projecto de lei em discussão.
Tudo significa que a necessidade da revisão do conceito estratégico de defesa nacional é irrecusável, visto as aceleradas alterações da estrutura mundial, os prognósticos reservados sobre o novo quadro de ameaças, as interrogações sobre o futuro da Aliança Atlântica a que pertencemos e as dúvidas sobre o que será o pilar europeu.
Ora, o serviço militar obrigatório corresponde, antes de mais, a um serviço a prestar à comunidade, isto é, a uma prestação e, sem definição desta, nada se pode dizer de sólido sobre o serviço ao qual é cometida essa responsabilidade. Por exemplo, o projecto socialista para o conceito estratégico nacional assinala que o conceito estratégico militar deve ter em conta a dispersão geográfica do território, a defesa aérea e o patrulhamento naval do espaço Interterritorial e também a adequação do sistema de forças à evolução das potenciais ameaças e da situação internacional.
Temos alguma doutrina governamental fixada a este respeito, um comprometimento dos órgãos de soberania com as alternativas possíveis que persistam e que devam ser assinadas às missões das forças armadas para estas cumprirem a obrigação de aconselhar sobre o sistema de forças, dispositivo e equipamento?
Julgamos que tudo isto está por decidir e que os termos formais de referência à disposição do Parlamento são exactamente aqueles que existiam na data em que foi votada a Lei de Defesa Nacional.
Todos estamos, finalmente, de acordo em que a conjuntura de então já não existe, mas ainda não foi proposto sequer acordo para uma conceptualização da conjuntura nova.
Há muito a impressão de que apenas sabemos das queixas sobre o conteúdo da prestação do serviço militar, tal como é legalmente definido, sobre o espírito da juventude em relação a tal obrigação e sobre os calendários eleitorais, mas sem decisão sobre os termos reais do problema do serviço que a Constituição espera do Estado nesta área, da estrutura do aparelho que deve assegurar aquela prestação de serviço e do serviço que se exige dos cidadãos para preencher a estrutura do aparelho e garantir a sua eficácia operacional. O Governo começou, quer-nos parecer, pelo fim.
O projecto de lei do Partido Socialista responde com uma casuística de «socorro» à decisão, sem fundamento conhecido de reduzir drasticamente a duração do serviço militar obrigatório, abrindo o caminho a uma flexibilidade que corresponda aos alarmes das próprias forças armadas. Mas falta saber, porque o Governo não o disse, se o anúncio da redução não tem suporte racional que tire a causa aos alarmes, sem necessidade de casuística.
Podemos, realmente, iniciar um processo legislativo válido, nesta matéria, e por grande que possa vir a ser o clamor dos interessados, sem definição pelo Governo e sua maioria, destas questões? Inclino-me no sentido de que as propostas do Governo devem vir juntar-se às pendentes, que essa decisão não pode tardar em face das circunstâncias criadas e que tais propostas beneficiarão do facto de o Governo conhecer antecipadamente o pensamento do maior partido da oposição.
Em vista do Regimento, é na comissão que irão encontrar-se, e para lá deve ser remetido, o importante projecto em apreciação. Coloca-se em plano diferente a questão do conteúdo do dever militar, que aparece em qualquer regime deste, e da participação constante da juventude no processo. Mas a conexão das matérias aconselha que tudo seja visto em conjunto e que os projectos pendentes tenham o mesmo destino.
Não parece, todavia, que esta questão possa continuar a desenvolver-se no plano tecnocrático da relação meios-fins de defesa, dando por assente que as forças armadas e o serviço militar já nada têm a ver com a defesa da identidade nacional dos Portugueses, com a sua história