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1628 I SÉRIE-NÚMERO 50

As dúvidas então levantadas e as preocupações manifestadas poderiam ser maiores, relativamente ao projecto de lei do PSD, se só ele fosse a base da elaboração da lei do segredo de Estado, mas que podem, de certo modo, ser acauteladas quando está em discussão um conjunto vasto de soluções que, esperamos, sejam consideradas em sede de comissão.
O projecto de lei do PSD parece-nos ser o que está mais desenquadrado da filosofia global, subjacente ao nosso quadro constitucional, nomeadamente no que respeita à transparência da administração, podendo mesmo ser considerado fendo de inconstitucionalidade, e, ao ser aprovado como está, pode, em nossa opinião, pôr em causa o princípio da «administração aberta», ao considerar que quase tudo é susceptível de ser segredo de Estado, quando o princípio deve ser exactamente o contrário. No entanto, pensamos - volto a sublinhar - que, sendo esta uma matéria verdadeiramente estrutural do Estado Português e uma matéria em que é fundamental que se estabeleça o maior consenso possível, dado o seu objectivo, que não pode nem deve ser partidarizado, e atendendo também ao parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, aprovado por unanimidade, preferimos considerar genericamente todos os diplomas como um contributo, partindo do princípio de que nenhum deles se pode considerar um trabalho acabado em matéria do segredo de Estado, até porque se está a legislar sobre uma matéria em que há ausência de legislação portuguesa anterior.
Preferimos, claramente, aprofundar o debate, reafirmando os princípios e respondendo, em moldes mais concretos, a algumas das questões essenciais levantadas.
A primeira delas tem a ver, precisamente, com a determinação do âmbito do segredo de Estado e com a sua distinção de outras figuras de excepção à «administração aberta». Com efeito, sendo claro que o segredo de Estado constitui uma excepção ao princípio da «administração aberta» e, portanto, ao direito à informação e ao acesso aos documentos administrativos, é para nós também claro que o segredo de Estado e um regime excepcionalíssimo dentro das próprias excepções à «administração aberta», a começar pela natureza dos interesses tutelados, passando pelos critérios e grau de acesso e terminando na limitação absoluta de divulgação.
Destas diferenças resulta um rol de consequências importantíssimas ao nível dos dois regimes de excepção. Assim, por exemplo, se, num caso, é possível limitar o acesso à informação aos legitimamente interessados, noutro, tal não será, provavelmente, admissível, em função dos interesses e princípios tutelados. O problema é que, aqui, se entra no campo nebuloso do conflito de interesses, direitos, garantias, princípios e até liberdades, todos constitucionalmente reconhecidos.
Como resolvê-lo? É difícil responder a esta pergunta; no entanto, sempre diremos que um primeiro passo para o separar das águas seria não confundir o sistema de classificação dos documentos administrativos com o regime do segredo de Estado, nem mesmo considerando que as classificações mais restritivas dizem respeito a este regime. Por outras palavras, consideramos fundamental distinguir os dois regimes de excepção, princípio que o projecto do PSD põe claramente em causa.
As razões são simples e, em grande parte, já por nós enunciadas, a começar pela diferente natureza dos interesses tutelados, mas gostaríamos de realçar outras, nu esteira, aliás, das considerações e preocupações muito justamente
levantadas pelo Sr. Deputado Adriano Moreira. Não está apenas em causa o interesse tutelado mas a garantia desse interesse.
Ora, isso só será conseguido se tivermos a plena noção da diversidade e complexidade das situações, a começar, por exemplo, pela natureza dos actos. Um acto a ser salvaguardado pelo regime do segredo de Estado não tem, necessariamente, natureza administrativa ou exclusivamente administrativa. Pode ser um acto político apenas, ou um acto político com tradução administrativa. Pode ser um acto legislativo. Pode ser, inclusivamente, um acto com implicações de natureza judicial.
A título de exemplo, gostaria de referir que o proposto código de procedimento administrativo, que iremos discutir na próxima semana, no capítulo referente ao direito à informação, não faz qualquer referencia ao regime do segredo de Estado, limitando-se a indiciá-lo no artigo 65.º, n.º 1, m fine, relativo aos arquivos e registos, quando refere matérias relativas à segurança externa e interna, a par das referencias à investigação criminal e à intimidade das pessoas. E isto, para além de estabelecer, no artigo 61.º, n.º 3, alínea à), relativo ao direito dos interessados à informação, que «não podem ser dadas as informações sobre peças ou elementos que, nos termos legais, tenham classificação de muito secreto, secreto, confidencial ou reservado».
Ora, é para nós líquido que todo o cuidado tem de ser posto na diferenciação dos regimes e nas definições estabelecidas nas diversas sedes legais, com conexão, directa ou indirecta, ao regime do segredo de Estado, evitando, assim, meter tudo no mesmo saco, pondo em causa não só a dignidade do segredo de Estado como direitos e liberdades fundamentais constitucionalmente protegidos.
Não menos importante é, também, a definição dos pressupostos da aplicação do regime do segredo de Estado, não obstante as diferentes formulações, na prática comuns à generalidade dos projectos mas que tem, no do PSD, uma extensão diferente na qualificação material de matérias susceptíveis de serem submetidas a segredo de Estado e que vão para além das matérias institucionais, como sejam as de natureza financeira, económica, comercial e tecnológica.
Quanto à competência para a qualificação do segredo de Estado, entendemos que ela deve ser apenas reconhecida ao Presidente da República, ao Presidente da Assembleia da República e ao Primeiro-Ministro, no âmbito das respectivas atribuições e competências, sem prejuízo de outras entidades deverem ter a responsabilidade e o dever de propor a classificação ou de proceder, provisoriamente, em tempo certo, a ela quando da não classificação imediata possa resultar um dano irreparável ao interesse tutelado. Por outro lado, a classificação por uma das entidades referidas vincula as restantes, só podendo ser revogada por aquela que a ela procedeu, no respeito pelo princípio da divisão dos poderes.
As dificuldades técnicas na definição, aplicação, tramitação e garantia do segredo de Estado são, de facto, de vulto, e, porventura, na prática, sempre insuficientes, inoperantes e irrelevantes. Talvez por isso mesmo o projecto do CDS é, aparentemente, tão simples, pelo menos nas soluções. Mas, como disse o meu companheiro Miguel Galvão Teles, deve ser feito um esforço suplementar para que um diploma deixe tão claro quanto possível os objectivos do regime do segredo de Estado, mesmo que, acrescento eu, na prática, tudo dependa da moralidade e da responsabilidade de quem classifica o segredo de Estado.