1622 I SÉRIE - NÚMERO 50
Pensamos que deve ser exactamente ao contrário: que se impõe, nesta matéria, o paradigma inderrogável da transparência e não a impermeabilidade do sistema burocrático-administrativo. Dizemos sim à visibilidade e a uma proficiente fiscalização; dizemos não à implantação dos espelhos baços e à impunidade. Tanto mais quanto é certo que uma visão impenetrável do sistema do Governo se associa, naturalmente, a uma lógica cinegética em relação aos opositores, aos interrogadores incómodos, aos cidadãos interessados na coisa pública.
O controlo democrático, Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados, efectivo, sobre os serviços secretos e sobre o funcionamento do segredo de Estado é, a nosso ver, um vector cardeal de toda a tecidura da lei a elaborar.
Urge inverter as instruções e hábitos governamentais que bloqueiam a informação, põem aluquetes na boca dos funcionários, maldizem ou condenam ao purgatório de todos os labirintos os jornalistas que se não acomodam com versões oficiais ou oficiosas, batem com a porta na cara dos portugueses perguntadores, e isto em situações - pasme-se! - em que se não pode sequer invocar a segurança pública, a investigação criminal ou a defesa da privacidade enquanto valores correctamente tuteláveis.
Urge, por outro lado, derrotar as propensões para a propaganda como notícia fidedigna, para o condicionamento e prévia digestão, à Goebbels, do que deve chegar à massa anónima dos eleitores mediante serviçais - mas não qualificadorcs de uma classe deontologicamente credora de apreço - homens de pena volúvel ou de voz alaranjável.
O projecto de lei do PCP foi gizado segundo o princípio estrito da excepcionalidade. E levando em conta as reforçadas cautelas que, à luz do artigo 18.º da Constituição da República, terão sempre de aplicar-se em domínios como este: é, assim, nosso entendimento que a potenciação de tal leitura não pode, de forma alguma, conduzir a áreas de compromisso com a permissividade, a vulgarização de tudo o que se pretende contrabandear como segredo de Estado. Exactamente por isto se deve procurar que o elenco das entidades competentes para classificar e desclassificar - entre outras operações - documentos, informações e objectos seja o mais reduzido possível.
Eis porque atribuímos este poder ao Sr. Presidente da República, ao Sr. Presidente da Assembleia da República e ao Sr. Primeiro-Ministro. Considerar-se-ia a hipótese de ser o Governo, enquanto órgão colegial, a tomar uma decisão nesta esfera de melindre óbvio, mas jamais se aceitaria que pudesse ser um qualquer ministro, um qualquer secretário de Estado, um qualquer director-geral, um qualquer agente da administração central, a actuar, por esta forma esbarrondante, contra os elementares interesses e direitos dos cidadãos.
Conhecem-se zonas de especificidade, por exemplo no que toca aos serviços de informações, demasiado opacos e ignorados pela generalidade do País, pela quase totalidade do País. E, aqui, importa, antes de tudo, corrigir erros e disfunções, fazer com que o conselho de fiscalização, que emana desta Casa, funcione - não apenas com condições de trabalho mínimas para garantia da fiabilidade dos seus juízos, mas também mediante métodos capazes de aferir, sem margens brumosas, do cumprimento ou incumprimento das leis neste quadrante nodal.
Sabemos, num outro ângulo, que o Governo, através de compíscuas portarias, já hoje aprova, em conselhos de ministros, procedimentos que exuberem - muito longe do que preconizamos - de completa entorse à estrutura limitadíssima, restritivíssima, do que deve configurar-se como segredo de Estado. Mas, no exacto momento em que há ministros que afirmam que deve prescindir-se de um dos três serviços de informações, e em que os serviços de informações vivem alguma perigosa anomia, em que não é possível responsavelmente dizer que não há violações dos direitos fundamentais dos cidadãos a partir delas, acontece que o projecto de lei do PSD não só vem coonestar práticas inadmissíveis como alargar o âmbito da sua expansão até ao infinito, até à náusea.
Vozes do PCP: - Muito bem!
O Orador: -O que se reclama é, exactamente, desencobrir os escândalos, desproteger o crime de luva e de colarinho brancos, propiciar a pedagogia contra a corrupção e o autoritarismo venal; experiências recentes, originárias do Executivo de Cavaco Silva, ensinam-nos que este é o caminho e não qualquer um que o iluda ou inviabilize.
O PCP contraria a psicose securitária que joga no mercado do medo com maior ímpeto do que os especuladores bolsistas e condena, com total veemência, o secretismo como mobília carunchosa da política.
Vozes do PCP: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: Importa tornar claras, ainda, algumas das soluções que são avançadas pela iniciativa legiferadora de que somos autores.
Quando se prescreve que segredo de Estado não é oponível as prerrogativas de todos os órgãos de soberania, inclui-se já o órgão de soberania «tribunais». Mas a experiência obriga-nos, porventura, a ser mais explícitos. As incisivas análises que, no Direito Comparado, têm vindo a ser realizadas comprovam, em inclementes conclusões, os graves riscos para a ordem democrática num regime de segredo de Estado que venha a confundir-se com a hidra das sete cabeças de impedir as magistraturas de actuarem. Recordem-se, na experiência italiana, as reflexões produzidas em torno da Gládio, da P2, de outras indébitas actividades secretas, no célebre caso Giovannoni. Por isso propugnamos, de forma explícita, que não seja oponível aos tribunais o segredo de Estado, em qualquer caso. Discordamos da posição do PSD, como, em absoluto, da lógica de enunciação que consta do artigo 2.º do seu projecto de lei há pouco defendida pelo Sr. Deputado Manuel da Costa Andrade, num ensaio insucedido de branqueamento, de esfacelamento dos ângulos mais insuportáveis, justamente porque, ao nosso olhar atento, o que é preciso é desenhar normas de alto sentido de responsabilidade e tão parcimoniosamente dadas à abertura ao segredo de Estado que acabem mais depressa confundíveis com toda a restrição do que com todo o laxismo.
Justificava-se, entretanto, por razões concretas, uma disposição - que deverá, aliás, em especialidade, ser melhor redigida - que torne claro algo que vem sendo discutido no âmbito dos tribunais administrativos e fiscais e aí gerando certa polémica. Propomos que o regime do segredo de Estado que aprovarmos vincule, para os efeitos do previsto no artigo 82.º, as emergências ocorrentes à sombra da Lei dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Porque se suscitaram dificuldades e dúvidas hermenêuticas é que se preferiu integrar uma lei desta natureza com um artigo explicitativo como o que acabo de mencionar.