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1748 I SÉRIE-NÚMERO 49

abordada sob o nome e a teoria do white collar crime, originária das escolas de criminologia dos Estados Unidos
Chamados a discutir e valorar a iniciativa legislativa do Governo, o nosso discurso deve privilegiar dois tópicos fundamentais: em primeiro lugar, a adequação político--criminal das inovações sugeridas pelo Governo - trata-se fundamentalmente de se indicar se as medidas propostas se mostram necessárias e idóneas para alcançar as metas indicadas, um exercício que terá de fazer-se com os olhos postos no recorte criminologia) destas condutas, tal como nos é mediatizado pela mais avalizada investigação criminológica
Em segundo lugar, havemos de interrogar-nos sobre a legitimação formal e, sobretudo, material das medidas propostas. Trata-se, aqui, fundamentalmente de se indicar se o necessário empenhamento na luta contra esta criminalidade se mantém ou não nos limites impostos pelo Estado de direito; trata-se, noutros termos, de prevenir que o balanceamento para uma lógica de eficácia-aquela racionalidade orientada para fins de que nos falava Max Weber nos faça perder de vista as exigências de uma racionalidade axiológico-moral, uma Werterationalitaet de que nos fala o mesmo autor, étimo último de legitimação de toda a acção estadual. Isto por forma a assegurar-se que, mesmo na luta mais empenhada contra as manifestações mais intoleráveis e rebeldes de criminalidade, o Estado mantenha a sua irrenunciável distanciação e superioridade ética em relação aos agentes de comportamentos criminosos.
É sobre estes dois complexos de questões que me proponho, nos curtos minutos postos à minha disposição e com a aceleração aconselhável pelas circunstâncias e pela hora, deixar registadas algumas notas de forma intencional e assumidamente sincopada e fragmentária.
A começar, alguns traços que nos permitam referenciar o perfil criminologia) das práticas em exame. Nesta perspectiva avultam, em primeira linha as elevadas cifras negras. À semelhança do que acontece na criminalidade em geral, na criminalidade de corrupção ou contra a economia é mais acentuado o desfasamento entre a criminalidade real e a chamada criminalidade oficial. Tudo sugere que também aqui, talvez de forma ainda mais acentuada, a criminalidade oficial representa apenas uma ínfima ponta de um grande iceberg que fica submerso.
Na literatura criminológica tanto numa perspectiva empírica, como numa perspectiva teórica, regista-se, hoje, um assinalável consenso quanto à indicação dos factores ou causas desta selecção privilegiada da criminalidade de corrupção e da criminalidade antieconómica.
Em primeiro lugar, tal deriva das estruturas ou modelos de acção e interacção intersubjectiva das condutas que dão expressão à corrupção e ao crime económico.
Ao contrário do que acontece na criminalidade tradicional e normal, aqui não há perfeitamente identificado, em termos psicológicos, um agressor e uma vítima. Não há também, ao contrário do que acontece num crime de roubo ou de furto, uma conflitualidade exposta entre uma vítima e um agente de um crime, conflitualidade que emerge nas relações reais da vida e é depois transportada para a dramatização do processo feito sob a égide das instâncias formais de controlo. A relação é, aqui, claramente outra.
Entre agentes, medeia uma relação que podemos, com a criminologia, apodar de cliente e fornecedor de serviços. À semelhança do que acontece em todas as outras formas de criminalidade onde são incriminadas a prestação de serviços ou a permuta de bens, também aqui as relações não são de conflitualidade entre as partes, pelo contrário, são relações de cumplicidade e de solidariedade contra a devassa e a intromissão das instâncias formais de controlo, a começar pelas polícias.
Em segundo lugar, como factor determinante desta selecção privilegiada a nível da criminalidade de corrupção e da criminalidade económica, avulta a extremamente reduzida visibilidade das condutas.
Estes crimes não são particularmente visíveis, nem no plano das suas expressões fácticas, nem no plano das suas valorações morais, isto é, no plano da sua qualificação normativa Quanto às expressões fácticas, a invisibilidade é uma nota comummente acentuada para caracterizar o «crime de colarinhos brancos», de que a corrupção é uma expressão paradigmática.
É que, diferentemente do que se chegou a acreditar, os sinais distintivos de classes ou de grupos não passam apenas pela detenção ou não de meios de produção, nos termos da vulgar e ultrapassada vulgata marxista. Há outras formas de determinação e de demarcação de grupos e de classes sociais e uma delas é, precisamente, a distribuição diferencial da privacidade. Os ricos têm mais tempo de privacidade do que os pobres. Os crimes dos ricos ocorrem, por via de regra, na sua maior parte, sob a invisibilidade e substraídos, portanto, à devassa das instâncias formais do controlo. Os crimes dos nobres, o blue collar crime, ocorrem, normalmente, em espaços mais publicizados, mais expostos à devassa.
Se é assim no que loca à expressão fáctica das condutas, que não se vêem facilmente, que muitas vezes assumem a forma de invisíveis acordos, invisíveis transações, por maioria de razão também assim é ainda a nível da sua própria qualificação normativa. Normalmente, pelo menos ao nível da consciência colectiva e dos estereótipos mais fortes da consciência colectiva não há muito a ideia de que o crime contra a economia e o crime de corrupção sejam crimes com a mesma gravidade, com a mesma ressonância emotiva, do crime de rua ou do crime tradicional. Para muitos cidadãos, a diferença que separa estes crimes dos grandes actos de inteligência e de génio, e que faz deles meros kavalliersdelikte, é muito ténue.
Acresce que também aqui e do lado das vítimas se verifica uma grande invisibilidade. Estas, por via de regra, são vítimas dispersas, difusas, e para além de não terem consciência das praticas e dos efeitos lesivos que sobre elas impendem, não têm sequer consciência da qualificação jurídica das condutas.
Significa isto que, ao contrário do que acontece na criminalidade normal, o sistema penal não pode contar com o papel tradicional da vítima. A vítima é, na criminalidade, normal, o gate keeper de todo o sistema É a vítima, por via de regra, que faz de guardião do sistema, é ela que introduz os casos criminais no sistema de resposta ao crime. É através da vítima ofendida na sua integridade física, na sua liberdade sexual, através dos parentes da vítima de homicídio, através da denúncia das vítimas do roubo, que os crimes são, na sua esmagadora maioria, levados ao conhecimento das instâncias formais de controlo.
Nestes casos, na criminalidade normal, por via de regra, o sistema penal tem apenas uma resposta ao input feito pela vítima.
Na criminalidade de corrupção, na antieconómica, o quadro é manifestamente outro. Se as instâncias formais de controlo querem ter alguma eficácia, não podem ficar à espera das denúncias, têm, pelo contrário, que tomar uma atitude pró-activa e não reactiva à criminalidade.