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2854 I SÉRIE - NÚMERO 87

cão do direito material, não foram aproveitadas na sua plenitude na prática dos tribunais. Tal tem acontecido, por exemplo, com a inquirição de testemunhas não oferecidas por iniciativa do tribunal, e o Código permite que elas sejam inquiridas nos termos do artigo 645.º, tal tem acontecido com a disposição que permite a formulação de novos quesitos e pode mesmo dizer-se que, apesar das especialidades do processo do trabalho, a prática tem vindo a aproximar perigosamente a lei processual laborai da lei processual civil.
E claro que a inércia no uso das disposições do processo civil que abrem a porta à verdade material - e são muito poucas - sucede porque aquelas normas não configuram verdadeiramente um poder vinculado do juiz, mas um poder discricionário.
Ora, a verdade é que o actual projecto, o que estamos a debater, consagrando o princípio de uma maior intervenção do juiz, o qual nos parece correcto, configura de uma forma nebulosa alguns dos poderes, que não aparecem suficientemente caracterizados como deveres, e não poderes discricionários, e consagra, em muitas disposições, estes últimos poderes discricionários.
Concretizando, o artigo 264.º, n.º 3, através do qual se permite que o juiz considere, na decisão, factos essenciais insuficientemente alegados, não configura claramente este poder como um poder vinculado - e, neste aspecto, parece-nos que o Professor Lebre de Freitas tem razão. Por outro lado, parece haver alguma contradição entre este artigo e aquilo que se prevê em relação à audiência preliminar. É que o artigo 508.º-A não restringe a possibilidade de suprimento pelo juiz de insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto, mas o princípio consignado na parte geral conhece limitações: é preciso que a parle manifeste a vontade de aproveitar factos insuficientemente alegados.
Alguma indecisão transparece, pois, dos preceitos em que surge aligeirado o princípio dispositivo, por forma a poder questionar-se validamente sobre a repercussão, na prática, de tais dispositivos.
Adivinha-se que, tal como com o actual Código, se venha a fazer um uso muito parco - ou se possa vir a fazer, nomeadamente pela falta de condições - de poderes que a lei, o projecto, hesitou em caracterizar como deveres, por indicação à Comissão Revisora do Ministério da Justiça.
Parecem-nos ainda excessivos os poderes discricionários concedidos ao juiz. Este pode, ou não, decidir se a audiência preliminar terá como objectivo o suprimento de insuficiências e imprecisões dos articulados, pode nomear um perito substituto em vez da parte, o tribunal de 2.ª instância pode ou não decidir recorrer à gravação da prova feita em l.ª instância, o juiz de execução pode fixar o valor a anunciar para a venda do bem penhorado e é inadmissível recurso do despacho em que se fixe o valor base.
Num sistema processual em que se pretende instituir a cooperação entre todos os intervenientes parece-nos que, em termos teóricos, a generosidade na concessão de tantos poderes discricionários limita ou pode limitar aquela cooperação, engrenando mal aquelas normas com as que apontam para que se privilegie o contacto do julgador com as partes.
Mas, apesar de hesitante aqui e além nas opções sobre questões de fundo - e mais adiante voltaremos a esta questão -, a verdade é que do cômputo global das soluções adoptadas se fica, mesmo assim, com a convicção de que muitas das inovadoras soluções dificilmente ultrapassarão a barreira da organização judiciária, que impede os contactos do julgador com as partes, que dificulta a realização do direito à justiça material.
A verdade é que os tribunais e os magistrados não dispõem hoje dos meios necessários para cumprir muito do que se inscreve na presente reforma - nem os funcionários judiciais.
E talvez porque a Comissão Revisora soubesse isto mesmo - parece que não, parece que é o Ministério da Justiça que sabe e colocou as balizas -, ficou nalguns casos aberta uma grande margem de discricionaridade na aplicação de algumas soluções, mesmo daquelas que constituem autênticos ângulos do sistema que vem desenhado.
Noutros casos, naqueles em que se situam preferentemente os utentes da justiça das classes mais desfavorecidas, a discricionariedade é ainda maior e assinalam-se entorses nos princípios previamente instituídos como norteadores da reforma da lei processual civil.
Por exemplo, a audiência preliminar, uma das inovações com que se quis revolucionar o sistema, pode não se realizar no processo ordinário, não nos casos em que o Sr. Secretário de Estado falou - disse que era apenas quando fosse complexo, mas não e assim no processo ordinário - mas quando se destine exclusivamente à fixação da base instrutória. O conceito "simplicidade da causa", balizador da actividade do juiz, é um conceito demasiadamente vago e relativo. E como não aparece claramente definido como poder vinculado do julgador o de realizar a audiência preliminar, a intervenção do juiz para suprir as insuficiências da alegação de factos e a realização do direito material por esta via surge com possibilidades de ficar seriamente comprometida.
No processo sumário, que e, de facto, aquele que pelos seus valores atinge mais as classes desfavorecidas, a questão é encarada de outra maneira e em prejuízo dessas pessoas. A realização da audiência preliminar é configurada como uma excepção e não como uma regra. E se juntarmos a esta característica da excepcionalidade o facto de não ser necessário fundamentar a sentença no processo sumário, nas acções não contestadas, porque não é, - aqui diz-se que o juiz se limita, na sentença, a condenar o réu no pedido -, concluiremos que, de facto, o processo civil dificilmente se vai despindo das suas características de processo colocado ao serviço das classes mais favorecidas, o que é visível no projecto, pese embora as inovações do mesmo.
É na área das classes economicamente débeis que o contacto do julgador com as partes é mais limitado, é nesta área que se mantêm ainda, embora mitigadamente, algumas consequências do efeito cominatório pleno - algumas e não todas, como a que já apontei.
Ao fim e ao cabo, as reformas permitidas pelo Ministério da Justiça não deixam de trazer a marca de que se tem de trabalhar para as estatísticas do Ministério, ainda que se sacrifiquem direitos dos cidadãos.
Apesar das melhorias que a Comissão - trabalhando num curto espaço de tempo, assinale-se - conseguiu introduzir, a verdade é que a necessidade de acelerar, de qualquer forma, a marcha processual aparece em proibições, no que toca à prova, cerceando o direito de acção e de defesa. Aparece na sujeição ao arbítrio da parte contrária, no que toca à substituição de testemunhas. Surge nas limitações ao recurso de agravo em segunda instância e aparece na manutenção do espartilho da limitação do número de testemunhas para cada facto. Mantém-se naquilo com que se pretende arredar - aliás, bem - o questionário muito pouco próprio de um processo civil democrático.