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2458 1 SÉRIE-NÚMERO 71

É precisamente este aspecto que pretendo questionar e clarificar, sendo certo que a presente discussão pode ser, em minha opinião, uma das mais significativamente transformadores da nossa cultura jurídica, na justa medida em que versa sobre uma proposta das mais acutilantemente descaracterizadoras da nosso cultura do Direito, o mesmo será dizer do normativo essencial que, durante séculos, não só consolidou a nossa identidade colectiva como constituiu numa das mais poderosas forças gregária da nossa unidade cultural.
Concordaremos todos, sem esforço digno de nota que, o Direito, e muito em particular o Direito Penal, é a síntese normativa de um conjunto de valores culturais que, com algum carácter de intemporalidade e de validade universal na colectiva a que diz respeito, se afirmaram e se realizaram ao longo da História, não tanto da História dos acontecimentos como da história de valores, a história cultural, e por isso mesmo a História individualizadora.
E isto é tanto mais verdade e tanto mais responsabilizador para nós quanto é certo que no nosso país o problema cultural é dos mais preocupantes, infelizmente, e dos mais caracterizadores.
E falo em Direito Penal neste âmbito precisamente pela sua transcendente importância, pela imprescindibilidade da culpa no juízo de valor que lhe é incito e pela conformidade da pena com a gravidade da culpa, entendida, longe de um sentido formal, senão não haveria limite ao arbítrio do legislador, mas num sentido social e moral e de cuja síntese deve ser feita pelo legislador. A culpa jurídica é um conceito social e um conceito moral e não meramente uma criação legislativa.
É o Direito Penal que de entre todos os ramos de Direito melhor capta a integral idade, a riqueza, a pluridimensionalidade do acto humano. Daí a particular intimidade que o Direito Processual Penal tem com o Direito Penal material.
O que quer dizer, Sr. Ministro, que é precisamente na substância do Direito Penal que tem de se ver e de indagar da bondade das alterações hoje aqui por vossa excelência propostas.
Por tudo isto, o Direito Penal é sempre, e por excelência, o Direito dos interesses primeiros e fundamentais da sociedade e da coexistência social. O Direito Penal é o direito moral das sociedades civilizadas e é exactamente aqui que se exprimem e se defendem os valores sociais mais profundos e se coordenam as regras básicas de convivência.
Mas é também por tudo isto que, quando o Direito - e em particular o penal - é incerto, de difícil acessibilidade, quando a sua bondade intrínseca é duvidosa, a sua aplicação morosa, ineficaz e insuficiente, o efeito social que implica de desagregação, de desmobilização, de criação de sentimentos ferozmente individualistas, de revolta, de orfandade e de desprotecção, é rapidíssimo e sempre, sempre, muito perigoso.
Sintomaticamente e não obstante, na aparência, as sociedades europeias se afastarem, cada e cada vez mais, de qualquer sistema normativo, não restam grandes duvidas que as exigências que estas mesmas sociedades fazem do mundo do Direito são cada vez mais absolutas. Precisamente, talvez, por aquele sentimento de orfandade de que falava há pouco, consiste no facto de o cidadão tudo esperar da justiça, não só na determinação do justo como também de uma certa pedagogia, na determinação de certezas, de clarificação de ideias, de condutas, de marcar, afinal, o que é bem e o que é mal, o que pressuporá sempre, a par da excelência da lei, a transparência e o acerto do modo como essa excelência se revela e se aplica aos cidadãos.
Sr. Presidente, Sr. Ministro, Srs. Deputados: É nossa profunda convicção que um dos erros mais trágicos que se podem perpetrar nos tempos que correm é negar ao "mundo do Direito" o lugar institucional que lhe cabe nas sociedades; é negar-lhe a função da pedagogia cívica e cultural que tem que desempenhar; é negar-lhe o papel de criação da cidadania da justiça que tem de acontecer entre nós; é fechar os olhos às realidades e às verdadeiras aspirações dos portugueses, às grandes questões estruturantes que se colocam à justiça e a que ela tem de responder.
É assumindo as nossas verdadeiras responsabilidades e não fugindo delas, confundindo o que é acessório, e mesmo efémero, com aquilo que é essencial e estrutural.
É precisamente sobre isto que temos de clarificar o nosso pensamento.
Quais são de facto os verdadeiros significado e alcance da crise da Justiça em Portugal?
Quais as suas razões?
Qual a sua profundidade na sociedade portuguesa?
Quais os verdadeiros soluções?
Quem, efectivamente, tem vontade de resolver estes problemas, governando Portugal?
A função do Governo não pode ser outra senão a de seleccionar e de sintetizar as aspirações nacionais, averiguando a sua justeza profunda, da sua conveniência última, de forma a determinar as melhores soluções e integrar estas no quadro dos princípios gerais que informam o interesse colectivo.
A acção do Governo, Sr. Ministro, não pode ficar refém de um défice de assunção de responsabilidades, não pode ficar prisioneira de medidas "politicamente correctas" em detrimento da resolução dos verdadeiros problemas estruturais do País. Os interesses de Portugal não são só contas, estatísticas e números ou, melhor, estas só são problema na medida em que são instrumentos da resolução dos problemas verdadeiros da Justiça como o são: a qualidade da lei; a qualidade dos agentes do direito e a sua formação; a qualidade da administração da justiça; os meios de que esta dispõe para responder às solicitações dos portugueses. Enfim, um sistema normativo coerente e moral, um projecto mobilizador do futuro.
Há que assumir estes desafios na certeza de que só a sua resolução é pacificadora e, assim, denunciar situações e alternativas que, pese embora a possibilidade aparente de libertarem os tribunais de estrangulamentos vários, irão fazê-lo à custa do agravamento das tensões sociais na medida em que endossam para a sociedade civil esses mesmos problemas não resolvidos de forma satisfatória, lançando os tribunais, a médio prazo, no fulcro do descrédito total e da centrifugação da sociedade portuguesa.
Sr. Presidente, Sr. Ministro, Srs. Deputados: A crise da Justiça em Portugal é grave! É grave e é até mesmo uma realidade estruturante da nossa sociedade é da nossa identidade