0299 | I Série - Número 09 | 12 De Outubro De 2000
Possa a votação que faremos hoje concluir ou avançar substancialmente esse processo.
Desse ponto de vista, chega-se aqui, ao dia de hoje, com dois progressos significativos, que não quero deixar de realçar. Em primeiro lugar - e muito bem -, o Governo abdicou da proposta de autorização legislativa e substitui-a por uma proposta de lei fundamental que vai ser discutida conjuntamente com as propostas da oposição.
Este Parlamento, naturalmente, não poderia, nem deveria, em circunstância alguma, aceitar que, sobre uma matéria essencial da sua autoridade e legitimidade, como a tributação, houvesse qualquer delegação de mandato e, portanto, qualquer autorização legislativa.
O segundo progresso que se regista é que no trabalho preparatório deste debate o Governo reconhece, assinala e até sublinha alguns elementos fundamentais da crise fiscal no nosso país - na nossa opinião, não é absolutamente coerente com esse ponto de vista.
Mas saber-se, hoje, os números exactos da diferença da tributação entre o trabalhador por conta de outrem e todos aqueles que em profissões liberais declaram rendimentos que são, em média, entre 1/5 e 1/7 abaixo dos rendimentos do trabalho, é muito importante e isso deve ser assinalado.
Sabe-se, hoje, que, em 1999, no que respeita ao IRC, a banca comercial portuguesa pagou 15,9% e que nos anos anteriores, de 1994 a 1998, tinha pago à volta de 20% - menos 10% ou 15% do que a indústria nacional.
Sabemos também que, em 1999, houve um banco, a Caixa Geral de Depósitos, que pagou 33,4% de IRC, mas o Banco Comercial Português pagou 13,4%, o Banco Mello 7,2% e o Banco Santander 0,5% - repito: 0,5%!
O reconhecimento desta situação, a que o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Ricardo Sá Fernandes, chamou, com alguma precisão, uma situação meio próxima da América Latina, merece todo o empenho na discussão que vamos ter.
Além disso, a proposta do Governo apresenta progressos importantes como a alteração de categorias, a tributação de rendimentos injustificados, a aplicação do regime da OCDE sobre preços de transferência e os avanços no reconhecimento das uniões de facto ou das famílias monoparentais. Esta proposta dá um contributo significativo para esta discussão em muitos pontos.
Vou concentrar-me, porque essa é a melhor forma de contribuir para este debate, sobre aquilo que nos parecem ser os erros fundamentais e as críticas que temos a fazer e que justificam a apresentação de alternativas.
Esta proposta não é coerente do ponto de vista do englobamento.
O imposto, em Portugal, devendo ser um imposto único, nunca o foi, porque, como lembrava Francisco Sarsfield Cabral há pouco tempo, mantém-se um preceito absolutamente inconstitucional de que as regras da tributação do capital e do trabalho são diferenciadas e contraditórias.
O princípio do englobamento é a forma de resolver esta diferença inconstitucional e, no entanto, as acções ainda não são sujeitas ao regime geral de tributação das mais-valias; mantém-se a taxa liberatória para os dividendos; mantêm-se benefícios fiscais injustificados, que têm uma incidência predominante nos ganhos de capital e mantém-se um regime de transição injustificado para o regime de tributação das provisões sobre os riscos gerais de crédito. Em todos este pontos, o Governo não cumpre aquilo que a Constituição da República Portuguesa, a lei, o bom senso e a boa prática fiscal recomendam.
É, no entanto, sobre três outras matérias que as diferenças entre as propostas do Bloco de Esquerda e as do Governo são mais importantes.
Começo por referir, muito brevemente, uma delas, que não está em discussão hoje e que, portanto, para o que nos interessa, aqui, na deliberação que vamos tomar, não é mais do que um sintoma das escolhas que são feitas.
O Governo rejeitou a proposta do Bloco de Esquerda relativa ao imposto sobre as grandes fortunas, dizendo que não podia sequer considerá-la e argumentou, aqui, numa interpelação, há cerca de 15 dias atrás, que essa proposta seria esquerdista, sectária. O Primeiro-Ministro garantiu aos Deputados socialistas, a considerar a boa fé das informações jornalísticas, que não queria «esquerdalhadas».
No entanto, uma lei com estas características, aliás, com uma incidência de taxa muito superior àquela que o Bloco de Esquerda propõe, visto que propomos um taxa de 1,2% no nível mais alto e em Espanha se pratica uma taxa 2,5%, existe em quase todos os países mais desenvolvidos do que o nosso.
E para informação do Sr. Ministro das Finanças, vou ler-lhe alguns dos parágrafos do preâmbulo da lei espanhola, o qual explica porque é que, em Espanha, um Governo socialista teve de impor esta lei e por que razão é que, hoje, um Governo conservador a mantém.
Diz o Decreto de 7 de Junho de 1991: «Aplicando um novo imposto sobre o património, pomos fim ao carácter excepcional e transitório que havia no regime actualmente vigente, dando cumprimento ao que devem ser os objectivos fundamentais da equidade, agravando a capacidade de pagamento adicional que a posse de património supõe e agravando a utilização produtiva de recursos da forma fiscalmente mais transparente, impondo uma melhor distribuição do rendimento e da riqueza.
Até agora o imposto sobre o património cumpriu, principalmente, uma função de caracter censitário e de controlo sobre o pagamento do I.R.P.F.» - que é o imposto sobre a renda das pessoas físicas, em Espanha.
O preâmbulo da lei espanhola diz ainda: «O novo imposto, sem esquecer estes objectivos tradicionais, assume outros fundamentais como a consequência de uma maior eficácia na utilização dos patrimónios, para a obtenção de uma maior justiça redistributiva, que é fundamental.».
Não se trata de uma medida de terceira via; trata-se de uma proposta que socialistas espanhóis fizeram aprovar, que conservadores mantiveram e que só pode ser rejeitada por quem não tenha qualquer via do ponto de vista da modernização e da transparência do sistema fiscal. E nisto, como se vê, tudo nos separa da proposta do Governo.
Separa-nos ainda uma outra matéria, que é a da tributação sobre os movimentos de capitais no off-shore da Madeira.
O Governo alegou aqui, na interpelação de há 15 dias atrás, que alguns misteriosos compromissos internacionais impediam que adoptássemos, em Portugal, em relação a off-shores, o mesmo tipo de regime que outros países, na OCDE e na União Europeia, já praticam com muito bons resultados fiscais.
Não sabemos quais são esses compromissos; suspeitamos até que eles não existem, porque em nenhum tratado se impõe à legislação portuguesa qualquer condicionamento sobre como deve determinar a regulação de um off-shore no território nacional.