2310 | I Série - Número 58 | 10 De Março De 2001
sava assim o seu espanto: «Pois quê? Não sabeis o que fazer do sufrágio universal? Santo Deus! Ele é o ponto de apoio, o inabalável ponto de apoio, que bastaria a um Arquimedes político para levantar o Mundo!»
Desprezaremos esse ponto de apoio? Com ele e a alavanca da nossa vontade, levantemos o Mundo!
Tudo depende de como organizaremos essa vontade. A este respeito há receitas conhecidas e experimentadas, receitas conhecidas e pouco experimentadas e receitas por descobrir. Figuram entre as primeiras a participação através dos partidos, dos sindicatos, das associações empresariais, das universidades, das organizações não governamentais e outras formas de aglutinação de vontades. Entre as segundas podem incluir-se a possibilidade de iniciativas populares de referendos e leis, a abertura a listas de candidatura subscritas por grupos de cidadãos, a iniciativa da acção popular e os chamados movimentos «sem»: dos sem terra, sem pão, sem tecto, sem emprego, sem instrução, sem papeis.
Além destes, fazem a sua aparição no tablado social outros tipos de movimentos só aparentemente espontâneos, como as múltiplas formas de indignação e de protesto, de exploração das contradições do sistema dominante, ou mesmo de reivindicação de reformas políticas: os movimentos dos ecologistas, das feministas, dos homossexuais, dos camionistas, contra a violência, contra o racismo e a xenofobia, contra os tráficos ilícitos (de drogas, de armas, de mulheres, de trabalhadores), contra a desumanidade das prisões, pela libertação do corpo, pela redução do tempo de trabalho. A lista não é de fácil menção exaustiva.
Tudo isto são, queira-se ou não, revelações de um fenómeno político-social novo: a emergência de movimentos sociais, de novas formas de participação política não institucionalizada, de partilha e tendencial pulverização do poder. O corte de estradas, o fecho de edifícios a cadeado e os buzinões, sob os pretextos mais fúteis, não punidos, se é que puníveis, são já o fenómeno reduzido à sua própria caricatura. É toda uma nova sociologia, mais própria da ficção do que da realidade. E, no entanto, real.
Por agora, todos estes movimentos, geradores de uma certa convivência incívica, actuam desgarrados. Mas nada nos garante que no futuro se não federem. Sociólogos com alta cotação no esforço de antecipação do futuro, como o consagrado Alain Touraine, acham mesmo que «a formação de novos movimentos sociais, susceptível de desencadear reformas políticas, é necessária». Está implícita nesta afirmação a descrença na capacidade dos responsáveis políticos para fazerem essas reformas. Ou as fazemos, e enquadramos os que protestam, ou convocamos o extremismo.
Também eu venho receando que o Mundo moderno se encontre tão prisioneiro das suas próprias contradições, e dos seus inarredáveis jogos de interesses, que as inovações indispensáveis comecem a não ser possíveis através de reformas de cima para baixo. Até porque, em muitos casos, já não bastam reformas, sendo indispensáveis rupturas. Daí que Touraine entenda que «a salvação chegará dos dominados e sem protecção».
Serei só eu a identificar nesta visão das coisas um insuspeitado perfume a Hegel e a Marx?
Em pleno triunfo da ciência e das tecnologias, e do correspondente progresso, como não lembrar também a advertência do «vidente» Tocqueville, quando nos lembrou que «é o progresso que gera as revoltas»?
Sr. Presidente da República, acabo de invocar uma pequena amostra de como o Mundo deste seu segundo mandato não é nem vai ser necessariamente o mesmo do primeiro. As mudanças que revolvem o status social e político de um momento dado ocorrem tão vertiginosamente que mal temos tempo para consciencializarmos o fosso que separa o que foi do que é. Pior do que isso: para anteciparmos o que vai ser amanhã. A este ritmo de vertigem, os cinco anos de um mandato podem ser uma eternidade.
Esta constatação, que tenho por irrecusável, exige de Vossa Excelência o redobrado afã de um contínuo aggiornamento. Os juízos de certeza só em estrita medida podem continuar a ser instrumento de trabalho de um alto responsável político. O que foi válido e recomendável para ontem pode não o ser para hoje, ou deixar de sê-lo para amanhã.
Tenho, a esse respeito, defendido a necessidade de uma reflexão reforçada e prospectiva do que vai ocorrendo no Mundo nosso de cada dia. Reforçada, porque temos vivido e agido em défice dela. Prospectiva para que, na medida do possível, nos não deixemos colher desnorteados e surpresos.
Daí que eu venha defendendo, contra o pendor para a mesmice de todas as rotinas que tomou conta do Mundo, a necessidade de que procuremos definir as tendências materiais, sociais e políticas que devamos ter por irreversíveis ou apenas prováveis. Quanto às irreversíveis, para que as retardemos, se indesejáveis, ou em qualquer caso nos acomodemos a elas. Quanto às prováveis, para lutarmos por elas ou contra elas, consoante for o caso. Temos de acreditar na probabilidade do improvável, ou na improbabilidade do provável, conforme o juízo que fizermos sobre as causas que os determinam.
Dou um exemplo: é ou não previsível que a violência continue a ser cada vez mais fácil, mais acessível, mais individualmente exercitável, mais generalizada, mais organizada e mais impune, qualquer que seja o espaço ou o país considerado? Que tem sido feito a nível global para, com eficácia, ser travada essa tendência, certamente não irreversível, mas até agora não revertida?
A resposta é: pouco ou nada. A novas formas de violência e criminalidade, os responsáveis políticos de não importa que país têm oposto, e continuam a opor, remendos, nem sempre novos, no pano velho das clássicas respostas penais, policiais, judiciais e prisionais de raio curto. Válidas, quando muito, no espaço circunscrito das legislações e jurisdições nacionais. Leis que só valem o que valem até ao lado de cá de fronteiras que, nalguns casos, e para outros efeitos, até já nem existem; polícias pouco menos do que artesanais, tribunais de competência comarcã; prisões que, em muitos casos, saem mal do confronto com as masmorras dos romances de Charles Dickens. Isto quando as grandes empresas universais do crime organizado operam a nível global; dispõem dos meios tecnológicos mais sofisticados; auferem lucros fabulosos por ausência de medidas políticas que disso as impeçam; lavam esse dinheiro sujo nos «offshores» e nas bolsas sem fiscalização, e em certos bancos sem alma; investem essa «roupa lavada» na economia legal; dominam sectores cada vez mais vastos e relevantes do mercado; e começam a ver luzir no horizonte o dia em que o seu poder económico lhes garanta o controle de suculentas fatias de poder político. O «Big Brother» de Orwell não está, assim, condenado a permanecer apenas como um sucesso televisivo. Sobretudo se o comum dos mortais continuar