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I SÉRIE — NÚMERO 94

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Este conjunto de iniciativas acentua ainda mais a sensação de que a política está sob cerco. Invoco aqui o

melhor debate académico, filosófico-político, da teoria da democracia, da ciência política, que tem um exemplo

paradigmático e superior no trabalho de Daniel Innerarity, A política em tempos de indignação (trad., D. Quixote,

Alfragide, 2016).

O diagnóstico

A política está sob cerco, não apenas pelos populismos. O cerco é frequentemente protagonizado por um

número significativo de cidadãos informados e por instituições não populistas, como as entidades religiosas, as

ONG da transparência, integridade, anticorrupção, cívicas, ambientais, associações de classe, etc.

O cerco alicerça-se, desde logo, na degradação da imagem social da política e dos políticos, degradação da

opinião sobre o exercício da atividade política, em geral, e sobre os que a exercem:

a) A política não é mais encarada como atividade nobre, atraente, que motiva os melhores para a exercer,

tendendo a ser vista como uma atividade desgraduada, ociosa, inútil, prejudicial;

b) A política repele: muitos que exprimem opiniões políticas procuram a todo o custo escondê-las atrás de

argumentos técnicos, de «bom senso», não ideológicas, tecnocráticas; políticos, alguns de topo, renegam a

condição de político, procurando convencer que são apolíticos ou não políticos;

c) Os políticos, independentemente do quadrante, têm uma imagem genericamente negativa ou censurada,

são vistos como uma classe movida por interesses próprios, os interesses da «classe política», bem paga —

muito acima, pensa-se, do comum dos cidadãos —, auferidora de privilégios excessivos (casa, carro com

motorista, vencimentos, pensões vitalícias, exército de assessores livremente escolhidos e outras ilusões).

O incentivo para exercer atividade política diminui em quase todas as sociedades democráticas e abertas:

a) Os vencimentos e benefícios dos políticos, salvo casos relativamente excecionais (Itália, Parlamento

Europeu, etc.) são muitas vezes inferiores aos auferidos pelos profissionais mais qualificados no exercícios de

certas atividades (empresariais, gestão de empresas, de investigação, profissionais liberais, etc.). Por isso,

aqueles profissionais sentem-se pouco atraídos para cargos políticos, particularmente quando estes têm de ser

exercidos em regime de exclusividade;

b) Esta tendência é crescente, uma vez que os vencimentos e regalias dos políticos tendem a estagnar (não

há condições, em lugar nenhum, para as melhorar, antes pelo contrário, a tendência é para diminuir), enquanto

melhoram no setor privado;

c) Por outro lado, a revolução tecnológica tornou ainda mais frequente, eficaz e imediata a vigilância sobre a

vida particular e a conduta privada dos políticos e das suas famílias. Esta circunstância, associada à ideia de

que, como figuras públicas, os políticos devem sujeitar-se à devassa ilimitada, estando inibidos de se proteger

da exibição ou exposição pública da sua intimidade («se não queriam não se candidatassem…», clamam vozes

indignadas), leva à permanente vigilância do que um político é ou faz (com quem almoça, onde e com quem

passou férias ou foi visto na última viagem, onde vive, que carro tem, que relações cultiva) e mesmo do que a

sua família e os seus amigos fazem;

d) Acresce que os regimes de trabalho, as cargas horárias, a necessidade de estar permanentemente

disponível, mas também os regimes de responsabilidade política, financeira, moral, levam a que um titular de

cargo político esteja sob tensão e risco permanentes, inclusive de quebra abruta e irremediável da «carreira»

política, do seu plano de vida, do seu investimento no serviço público, das suas ambições;

e) Os políticos são o bode expiatório dos insucessos e de todo o mal que sucede aos vários níveis da

sociedade, alibis frequentes dos que não querem assumir responsabilidades sociais;

f) O exercício de atividades políticas frequentemente (talvez cada vez menos, reconheça-se) implica a

interrupção de carreiras e atividades profissionais, seja por incompatibilidade estatutária ou outra. Muitas

funções políticas têm de ser exercidas em exclusividade. Isto leva a que o político tenha de interromper a sua

carreira de origem, se a tiver, sem progressão enquanto estiver na política e, talvez, sem possibilidade de atingir

o topo da carreira se a ela voltar. O advogado tem de fechar o seu escritório e, seguramente, os clientes não

ficarão à espera, nem regressam quando o causídico voltar à praça; o arquiteto, o médico, o engenheiro terão

de penosamente reconstruir a sua carteira de clientes, se ainda tiverem mão para a sua profissão;

g) Ao exercício de funções políticas está associada frequentemente a obrigação de reporte do rendimento e

património, com acesso ilimitado por terceiros, em alguns casos através de instrumentos informáticos on-line,

aumentando a transparência, certamente, mas também o risco de serem objeto de atividades ilícitas de terceiros

visando esse património e rendimentos.