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II SÉRIE — NÚMERO 83
Ou seja, o Governo não queria baixar o preço do leite, mas queria colocar a Assembleia da República perante a situação embaraçosa de ser a culpada da não baixa desse preço. O Governo desejaria ardentemente baixar o preço do leite e a péssima Assembleia da República tinha estado a favor dos passeantes de domingo! Este dilema é, repito, inteiramente inaceitável.
Extraindo lições disto tudo, alguns Srs. Deputados colocaram a todos os outros, incluindo o PSD e o Governo, a questão de trincharmos, de uma vez para sempre, o famoso dilema do Primeiro-Ministro Cavaco Silva e o Sr. Secretário de Estado, surpreendentemente, lança uma aposta violentíssima, dizendo que não pode ser, que não é nada disso, que a Assembleia da República não tem esse poder e, o que me surpreende particularmente, invoca argumentos contraditórios.
Há uma questão técnica a resolver, que foi colocada pelo Sr. Deputado Silva Lopes, pois creio que ela não está ainda resolvida, e sobre isso reflectiria depois, mas a questão política é claríssima. A Assembleia da República quer, e quer claramente, que baixe o preço do leite, mas não o pode determinar através de um artigo único que diga: «baixará o preço do leite para x». Não o podemos fazer porque isso está na esfera preservada do Governo. É evidente que isso não é contestado, mas podemos manifestar a nossa vontade política nesse sentido e o Governo não tem nada a ver com isso, literalmente nada, e tomará apenas conhecimento, batendo palmas ou manifestando-se com um protesto, o que é politicamente bastante inábil e ficará averbado em acta para os devidos efeitos.
Tendo, portanto, esta vontade política, como é que a Assembleia da República a poderá exprimir juridicamente dentro dos limites dos seus poderes e tendo em conta que o Governo tem competência exclusiva em matéria de formação de preços? Creio, Srs. Deputados, que não o pode fazer senão da maneira que vem proposta porque não podemos intervir, ao contrário do Governo, em todos os circuitos que levariam a um abaixamento, por essa via, dos preços do leite. Podemos, naturalmente, fazer um reforço e aí vem a panóplia argumentativa do Sr. Secretário de Estado, dando a resposta: «Não podem.» E não podem porque o Governo não quer. Citou o Sr. Secretário de Estado o âmbito da revisão orçamental, que vai de um a dez, dizendo que não podíamos ir de um a quinze pois estávamos a meter matéria extravagante. E um raciocínio que não tem nada a ver com os poderes da Assembleia da República.
A Assembleia da República não está, como uma galinha, dentro de um circuito travado pelo Governo. Não aceitamos essa limitação, pois não a podemos aceitar constitucionalmente. A Assembleia da República tem de ponderar — e não vale a pena insistir nesse aspecto — o âmbito que entende dever ser dado aos reforços orçamentais a imprimir à luz do interesse nacional tal qual o entenda, e é livre de o entender. Neste caso, entendemos que é exigível essa baixa e para isso teremos de adoptar medidas.
O Governo diz, como segundo argumento, que a Assembleia da República poderá fazer o que quiser, mas que isso, além de estar deslocado, invade a competência do mesmo Governo porque, disse textualmente o Sr. Secretário de Estado, a gestão orçamental é da competência exclusiva do Governo e nos planos dessa gestão não está, disse também o Sr. Secretário de
Estado, um reforço da verba para este efeito. Não está, logo o Governo não a quer! Sr. Secretário de Estado, queremos nós — essa é que é a questão —, exprimindo um gesto político que o Governo condenará ou acatará.
O Governo tem, todavia, razão num ponto que creio ser importante registar: esta Assembleia não tem, virtualmente, nenhum poder para coagir o Governo a baixar o preço do leite reforçando esta verba. Nenhum! Portanto, se o Governo amanhã aparecer diante do País com um ar choroso, dizendo: «a Assembleia da República reforçou-nos a verba, mas nós não queremos!», que apareça, por sua conta e risco. Agora dizer que nos ameaça com a ida ao Tribunal Constitucional, como fez em relação aos salários em atraso, dizendo também que violámos a lei travão, por favor não brinquem connosco! Se a Assembleia da República está em sede de debate orçamental, não há obstáculo da lei travão que possa ser invocado para este acto que estamos a praticar. Não há, a título nenhum. Praticamo-lo livremente e isso é incontestável. Aliás, se querem ir ao Tribunal Constitucional, que o façam, pois são perfeitamente livres de o fazer, embora isso seja inútil e seja apenas uma perda de tempo esse tribunal.
Coloca-se então agora a questão técnica, ou seja, qual a via a adoptar para proceder a este reforço de verbas, sabendo nós que, se o Governo lhe opuser o veto executivo, é improfícuo. A Assembleia quis, o Governo não quis, e, naturalmente, nenhuma criança nascerá se o Governo não o quiser!
Qual é a via técnico-jurídica para a Assembleia da República consagrar este reforço? Aqui creio que as dúvidas são pertinentes e o Sr. Deputado Nogueira de Brito levantou uma que me parece bastante fundamentada. A Assembleia da República tinha três formas de procurar consignar este reforço e a primeira seria inventar uma rubrica ad hoc chamada «leite» ou «despesa excepcional» para baixa do preço do leite. Podíamos até inventar uma sigla, mas creio que seria um mau caminho, pois poderia bulir com alguns princípios orçamentais a que estamos sujeitos e, naturalmente, reforçar a dotação provisional.
O Sr. Deputado Nogueira de Brito suscitou também a seguinte questão, muito pertinente, que creio será um conselho, embora vindo da bancada do CDS: «Se os senhores reforçam a dotação provisional, criam uma situação problemática, pois sendo a dotação provisional por definição e não estando dentro dela especificadas as verbas para além de determinado grau, poderá bem acontecer que o Governo utilize essa verba para um fim que não seja aquele que os senhores lhe destinaram e, nesse caso, estareis reforçando não o benefício do leite mas o benefício de outros líquidos ou até de outras realidades totalmente diferentes em relação às quais nós não temos nenhuma preocupação!» Creio que realmente não queremos isso. Resta saber, então, qual é a forma de querermos juridicamente aquilo que queremos politicamente. Creio que a hipótese que foi aventada, da transferência para fundos públicos, será, de todas as possíveis, a mais razoável, porque, embora seja uma via que não é aquela que está ao alcance do Governo — que pode agir sobre os mecanismos administrativos —, está ao nosso alcance. Neste caso, esta verba seria incluída da seguinte foram: «despesas excepcionais, transferências, sector público, fundos autónomos, INGA,» que assegura, segundo creio, transitória e legalmente, todas as competências do Fundo de Abastecimento nos termos do diploma que extinguiu o dito Fundo.