O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

1588-(46)

II SÉRIE — NÚMERO 82

da mesma natureza», quis interditar o acesso a esses sectores de todas as empresas com uma componente privada (cf., neste sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. i, pp. 417 e seg. e nota vi ao artigo 85.°).

Mas, mesmo que a solução haja de ser outra, isto é, concedendo que as empresas mistas com predomínio público já não sejam empresas privadas nem «entidades da mesma natureza» para efeitos do artigo 85.°, n.° 3, da CRP, a verdade é que essa conclusão não pode servir de sufrágio à tese de que, pela mesma razão, não haveria violação do artigo 83.°, n.° 1. É que — não é de mais sublinhá-lo— a CRP não se limita a proibir que as empresas nacionalizadas sejam transformadas em empresas privadas; o que a lei fundamental proíbe é a sua desnacionalização, tout court. Ora, como acima se demonstrou, uma empresa nacionalizada fica parcialmente desnacionalizada quando uma parte do seu capital passa a ser privado.

A empresa parcialmente privatizada pode não ser ainda uma empresa privada em sentido próprio, mas já não é seguramente uma empresa integralmente nacionalizada.

7 — A garantia institucional das empresas públicas

Nos termos do artigo 1.°, as empresas públicas podem ser transformadas em sociedades anónimas (de capitais públicos ou de maioria de capitais públicos). A norma não estabelece nenhuma excepção ou limite. Todas as empresas públicas podem ser transformadas em sociedades anónimas.

Isto quer dizer que, no limite, poderá deixar de haver empresas públicas, com a consequente caducidade do seu actual estatuto genérico (o Decreto-Lei n.° 260/76).

O problema constitucional que aqui se suscita é o seguinte: pode deixar de haver empresas públicas stricto sensu? A figura de empresa pública pode ser legalmente abolida?

A questão pode parecer, à primeira vista, ociosa. Mas não é. A questão é constitucionalmente relevante na medida em que a figura da empresa pública encontra-se explicitamente prevista na CRP [artigos 102.°, n.° 1, alínea b), 109.°, n.° 2, 168.°, n.° 1, alínea v), e 229.°, alínea f)].

É certo que não existe nenhuma norma a determinar expressamente a existência de empresas públicas, podendo, portanto, defender-se que à CRP é indiferente a subsistência de empresas públicas stricto sensu.

Não me parece ser essa a melhor interpretação. Julgo que o entendimento correcto é o de que estamos perante uma verdadeira e própria garantia institucional, isto é, de uma figura jurídica que, independentemente dos seus contornos específicos e do seu âmbito concreto de aplicação, é de existência constitucionalmente obrigatória, não podendo ser suprimida.

Existe uma inegável ligação entre a previsão constitucional da figura da empresa pública e a obrigatoriedade constitucional de um sector público [artigo 89.°, n.° 2, alínea a)], composto pelas «unidades de produção de propriedade colectiva, geridas pelo Estado». Naturalmente que não existe uma obrigação constitucional de as empresas do sector público revestirem necessariamente, todas elas, a forma de empresa

pública. Mas é de concluir que para a CRP a forma de empresa pública é a forma normal das empresas do sector público.

A este propósito, cabe ainda assinalar que o artigo 1.° do diploma não excepciona nenhuma empresa pública, nem sequer o Banco de Portugal, que também parece poder ser transformado em sociedade anónima mista, participada de capital privado até 49,9%.

É certo que a transformação das empresas públicas' se deve dar «nos termos da CRP». Mas, aparentemente, essa norma tem a ver apenas com o processo de transformação das empresas.

Como quer que seja, a verdade é que, a admitir-se que a lei não quis excluir o Banco de Portugal, então ela deve ser tida por inconstitucional. O Banco de Portugal está previsto na própria CRP «como banco central», com o «exclusivo da criação de moeda», colaborando, «de acordo com o Plano e as directivas do Governo [...], na execução das políticas monetária e financeira» (CRP, artigo 105.°, n.° 2). A expressa previsão constitucional do Banco de Portugal, bem como o papel que constitucionalmente lhe está confiado, fazem daquele, necessariamente, uma instituição pública, posta exclusivamente ao serviço do interesse público, o que manifestamente não se compadece com a sua transformação em sociedade mista, com a participação de capital privado e com a intervenção de uma lógica empresarial essencialmente alheia à lógica pública.

8 — Interpretação da lei fundamental e «constituição económica»

Julgo ter demonstrado que o preceito do artigo 83." não consente a privatização (total ou parcial) das empresas nacionalizadas.

Penso que isso, além de decorrer exuberantemente da letra e intenção normativa do preceito — expressa na sua fórmula enfática («conquistas irreversíveis») —, não é senão sublinhado quando se faz apelo a uma interpretação integrada dos preceitos da «constituição económica» global.

Não deixa de ser estranho que o acórdão se tenha bastado com um seco silogismo baseado num postulado perfeitamente indemonstrado — a saber: as nacionalizações não consistiram senão em transferir empresas do sector privado para o sector público —, sem cuidar minimamente de indagar sobre o propósito e sentido da garantia das nacionalizações no contexto global da «parte económica» da CRP.

Por mim, não vejo como é que é possível desligar a garantia das nacionalizações (artigo 83.°) dos princípios fundamentais da organização económica constitucional (artigo 80.°), bem como das incumbências prioritárias do Estado nesse domínio (artigo 81.°). Seguramente que as nacionalizações constituem realização e garantia de alguns dos mais eminentes princípios da constituição económica, designadamente os da «subordinação do poder económico ao poder político democrático» [artigo 80.°, alínea a)J, da «apropriação colectiva dos principais meios de produção» [artigo 80.°, alínea c)] e do «desenvolvimento da propriedade social» [artigo 80.°, alínea e), e artigo 90.°1. Não é por acaso que o artigo 90.°, n.° 2, menciona as «nacionalizações» como primeira das «condições de desenvolvimento da propriedade social», sendo que esta é inquestionavelmente uma das formas de realização da