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II SÉRIE — NÚMERO 82

resta saber é se existe alguma diferença entre as duas coisas, em termos constitucionais. Por minha parte, não vejo nenhuma.

4 — Nacionalização e sector público

O princípio das nacionalizações — repete-se — foi o da nacionalização integral das empresas abrangidas (com a já referida ressalva das participações estrangeiras). Se a nacionalização opera a 100%, parece evidente que a empresa deixa de ser tão nacionalizada como era quando ela passa a estar nacionalizada apenas a 51 %.

Uma tal empresa talvez ainda deva considerar-se integrada no sector público — como se defende no acórdão— para efeitos do artigo 89.° da CRP (ou porventura, até, para efeitos do artigo 85.°, n.° 3). Todavia, isso ainda tem a ver com a garantia constitucional das nacionalizações, expressa no artigo 83.°, pois a verdade é que este, nem na sua letra, nem no seu espírito, não se limita a garantir que as empresas nacionalizadas permaneçam no sector público.

Não é de aceitar o pressuposto de que o acórdão parte — e que não dedica grande espaço a demonstrar —, segundo o qual a garantia das nacionalizações equivale simplesmente a proibir a transferência das empresas nacionalizadas para o sector privado, o que seria compatível com participações privadas, desde que minoritárias, nas empresas nacionalizadas.

Como já mostrei antes, as nacionalizações não consistiram apenas em transferir empresas para o sector público, visto que, por um lado, algumas já lá estavam antes da nacionalização (pois já eram empresas mistas com maioria de capital público) e, por outro lado, para alcançar aquele objectivo bastaria ter nacionalizado o capital suficiente para perfazer a maioria de capital público. Ora, como se viu, não foi apenas isso que sucedeu. Por isso, garantir as nacionalizações é assegurar a persistência das empresas nacionalizadas como empresas totalmente nacionalizadas.

O argumento tirado do n.° 2 do artigo 83.° a favor da tese do acórdão é manifestamente bem frágil. O que desse preceito se pode e deve razoavelmente retirar é que as pequenas e médias empresas indirectamente nacionalizadas não gozam da garantia das nacionalizações, podendo, inclusivamente, ser integradas plenamente no sector privado, mediante a sua total desnacionalização ou privatização. Isto não quer dizer que só a privatização integral ou maioritária é que seria violadora da garantia das nacionalizações.

Por conseguinte, o n.° 2 não pode ser convincentemente utilizado, num suposto argumento a contrario sensu, para concluir que a privatização parcial minoritária não constitui ofensa à garantia das nacionalizações. O facto de se admitir uma excepção à garantia das nacionalizações e de se ir ao ponto de, em certos casos, se permitir privatização total, com integração total da empresa no sector privado, não quer dizer que a privatização parcial não seja também uma ofensa à garantia das nacionalizações. A privatização total, a integração plena no sector privado, é a hipótese extrema da desnacionalização; mas a privatização parcial é também uma forma (menos extrema, mas não menos inconstitucional) de desnacionalização.

Também no artigo 32.° da CRP, depois de se garantir o direito à liberdade, se menciona, como excep-

ção, apenas a prisão, quer a repressiva (n.° 2), quer a preventiva (n.° 3). E, todavia, ninguém pretenderia fazer decorrer daqui, a contrario sensu, que só a prisão é que atenta contra a liberdade. A prisão é a última ratio de perda da liberdade, havendo outras medidas atentatórias da garantia da liberdade (medidas de privação parcial da liberdade) que não são menos inconstitucionais (v. o Acórdão n.° 7/87).

Serve isto para concluir que o n.° 2 do artigo 83.° não pode ser utilizado para interpretar o n.° 1, no sentido em que o acórdão o faz, não apenas porque aquele preceito pode ter — e, a meu ver, tem — um sentido bastante diverso do que lhe foi dado, mas também porque a conclusão a que tal conduziria seria manifestamente incongruente com o alcance e sentido histórico e sistemático do n.° 1, que, indubitavelmente, teve o propósito de salvaguardar o acquis em matéria de nacionalizações, impedindo retrocessos nessa área.

5 — Privatização e capital nacionalizado

A redução da irreversibilidade das nacionalizações à garantia de que as empresas nacionalizadas permaneçam maioritariamente no sector público — tal é o ponto de partida do acórdão— conduziria, logicamente —para levar o raciocínio até ao fim—, à conclusão que isso é condição necessária e também é suficiente. Para garantir as nacionalizações é preciso —e seria apenas preciso— que a empresa nacionalizada se mantivesse no sector público através do predomínio público no capital e na gestão. Nada mais seria exigido. Ou seja: nem sequer seria necessário garantir a não privatização do capital efectivamente nacionalizado em 1974-1976, desde que a sua reprivatização não afectasse a regra da maioria do capital público. A conclusão lógica salta à vista: o Estado poderia desfazer-se mesmo de capital efectivamente nacionalizado desde que não afectasse a maioria de capital público!...

O acórdão guarda-se de avançar para essa conclusão. Mas este «pequeno» passo suplementar em frente na linha daquele raciocínio não deixou de ser dado por alguns (é caso para dizer abyssus abyssum invocai...). É um facto evidente que essa tese choca fragorosamente com a norma constitucional, pois, se a lei fundamental assevera que «todas as nacionalizações [... ] são conquistas irreversíveis», não se vê nenhum meio de afirmar que a irreversibilidade das nacionalizações é compatível com a desnacionalização do que foi nacionalizado. É ir contra lei expressa. É indefensável. Está para além de todos os limites suportáveis de esvaziamento das normas constitucionais.

Mas há uma coisa que se não pode dizer dessa tese. É que ela não seja coerente e consequente do pressuposto de que parte o acórdão. Este constrói um silogismo assim:

1) Nacionalizar é passar empresas para o sector público e desnacionalizar é passá-las para o sector privado;

2) As empresas mistas de capital e gestão maioritariamente públicos pertencem ao sector público;

3) Logo, a transformação das empresas nacionalizadas em empresas mistas de maioria pública não desnacionaliza essas empresas.