O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

10 | II Série A - Número: 102 | 20 de Janeiro de 2012

se revelaram pouco consensuais aquando da aprovação inicial da lei, o atual enquadramento jurídico oferecese insuficientemente conforme ao texto da Constituição, pelo menos a três níveis de análise. Em primeiro lugar, ao edificar critérios de acesso às técnicas de PMA assentes estritamente no estado civil e orientação sexual das beneficiárias, a lei opera uma discriminação que dificilmente se mostra compatível com a garantia do princípio da igualdade (artigo 13.º). Em segundo lugar, a lei mantém-se em desconformidade com uma visão integrada do direito a constituir família, plasmado no artigo 36.º e entendido na sua plenitude de concessão de proteção jurídico-constitucional às múltiplas manifestações que o conceito de família hoje integra.
Finalmente, a lei em vigor não assegura plenamente a realização do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, plasmado no n.º 1 do artigo 26.º da Lei Fundamental e preceito que se deve afigurar determinante na construção do novo regime jurídico.
Partimos, de facto, de um entendimento desta realidade que assume a existência de uma possibilidade de assegurar a realização, em condições abrangentes, de um direito à descendência biológica, acessível a todos e todas, que deve fundar a construção do regime jurídico da procriação medicamente assistida. Assente este facto, algo que o atual enquadramento normativo da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, claramente admite, ao definir como lícito o recurso às técnicas de procriação medicamente assistida e recusando pré-determinismos estritamente biológicos, importa retirar a ilação que falta, eliminando todos os fatores discriminatórios que subsistem no acesso a este direito.
Na ausência de qualquer fundamento que não passe por um juízo moral quanto a quem deve poder constituir família ou em que termos deve essa família ser estruturada, não se encontra qualquer argumento que possa impedir uma mulher solteira, divorciada, casada ou unida de facto com pessoa do mesmo sexo ou viúva de beneficiar de um direito que é reconhecido a outras mulheres, apenas porque estão casadas ou unidas de facto com pessoas de sexo diferente. A defesa ativa de um único modelo familiar caberá a outras instâncias, mas não ao Estado, o qual só pode basear-se em critérios de racionalidade e, a partir dos mesmos, atuar no sentido de remover os obstáculos infundados à felicidade das pessoas, o que é bem diferente de oferecer a felicidade em si mesma.
É, pois, tempo de acabar com a discriminação no acesso às técnicas de PMA. À semelhança de outras leis já revogadas, o Estado-legislador deve adequar-se à realidade social, sob pena de se transformar, nesse preceituado excludente, num Estado-moralizador. Naquele que, observando as variadíssimas formas de parentalidade e de conjugalidade existentes na sociedade, e decorrentes do já referido direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, tem por apenas ―elegível‖ um modelo de família tradicional traduzida no arquétipo pai-mãe-filho.
Os exemplos conhecidos de direito comparado revelam uma realidade bem mais aberta do que aquela que consta da lei portuguesa, admitindo-se o acesso a mulheres solteiras, bem como a casais de mulheres casadas ou unidas de facto em relações do mesmo sexo em Espanha, no Reino Unido, na Holanda, na Noruega, na Suécia (desde 2005), na Bélgica (desde 2007) e na Dinamarca (desde 2006), para referir apenas alguns casos. Curiosamente, muitos destas ordens jurídicas não admitem o recurso à maternidade de substituição (matéria que as várias iniciativas legislativas entre nós apresentadas têm mostrado reunir algum consenso), apontando sim para uma tendência, em termos comparados, para o acesso não discriminatório às técnicas de PMA, num quadro de técnicas que não meramente subsidiárias à procriação não-assistida.
Também nos Estados Unidos da América, por exemplo, enquanto o enquadramento jurídico é distinto nos vários Estados quanto à maternidade de substituição, sendo esta admitida apenas no Arkansas, Califórnia, Illinois, Massachusetts, Nova Jersey e Washington, é bem mais consensual o recurso às técnicas de PMA sem exigências quanto ao estado civil ou à existência de um diagnóstico de infertilidade.
A redação em vigor da lei, aliás, tem contribuído para que muitas mulheres portuguesas, perante a impossibilidade de encontrarem uma solução conforme à lei no território nacional, se desloquem a estabelecimentos de saúde no pais vizinho ou em países terceiros com regimes mais abertos, em busca da realização de um direito à sua realização individual no campo da maternidade, algo a que o legislador nacional lhes fecha a porta, sujeitando-as a inconvenientes e constrangimentos sérios de natureza financeira e jurídica. O caminho de revisão da lei deve, pois, passar pela introdução de uma alteração do regime de beneficiários das técnicas de procriação medicamente assistida, afirmando o princípio de que estas não se devem circunscrever nem apenas a pessoas casadas, nem apenas a casais de sexo diferente.