O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

II SÉRIE-A — NÚMERO 97

86

Wendell Holmes Jr. em Lochner v. New York − é feita para pessoas com visões fundamentalmente diversas

(…)». Ora, como a generalidade das conceções éticas – religiosas ou seculares – não satisfaz esta exigência

de reciprocidade política e razão pública, a única norma de conduta universal é a que devolve ao indivíduo

dotado da capacidade para tanto um poder de governo sobre a sua existência, ao livre desenvolvimento da

sua personalidade, através da garantia de uma esfera de liberdade negativa compatível com a igual garantia

concedida aos demais indivíduos. Todos os direitos fundamentais na tradição do constitucionalismo têm esse

sentido profundo: têm-no de modo evidente os direitos de liberdade, que protegem o titular da interferência

pública e fundam deveres estatais de proteção contra a interferência de terceiros; mas têm-no ainda os direitos

sociais, que incidem sobre determinadas condições materiais para o gozo efetivo dos direitos de liberdade.

Com o reconhecimento da interioridade e do pluralismo dos valores, a ideia de liberdade positiva não

desaparece, mas altera-se profundamente. Deixa de constituir uma norma material que orienta a conduta no

sentido de um correto desenvolvimento da personalidade e passa a constituir uma norma processual que se

traduz na exigência de que o exercício dos direitos deve satisfazer condições, observar trâmites e revestir

forma comensuráveis com os seus efeitos no desenvolvimento da personalidade do agente. Uma das

principais razões pelas quais a lei onera de modo muito diverso os mais variados atos e negócios da vida

quotidiana – um passeio na via pública, a compra de uma passagem aérea, a aquisição de um imóvel, a

constituição de uma associação, a celebração de um testamento – prende-se com a magnitude e a

reversibilidade das suas consequências na vida do autor. A oneração de um ato constitui sem dúvida uma

restrição da liberdade geral de ação na dimensão negativa de arbítrio individual ou ausência de

constrangimento – de agir como muito bem se entender, sem ter de prestar contas a ninguém. Mas pode

constituir uma forma de tutela da liberdade geral de ação na dimensão positiva de garantia de

autodeterminação pessoal – de formação de uma decisão adequadamente informada, ponderada e firmada.

Assim, a liberdade geral de ação compreende duas dimensões distintas e carecidas de concordância prática: o

direito de agir sem impedimentos ou obstáculos criados pelo poder público e o direito à proteção das

condições de formação de uma decisão autónoma. O primeiro é um direito defensivo, correlativo de um dever

estatal de abstenção; o segundo é um direito positivo, correlativo de um dever estatal de prestação. É deste

modo – numa tensão permanente mediada pelo princípio da proporcionalidade − que liberdade negativa e

positiva coexistem na ordem constitucional das democracias liberais.

6. O exercício negativo do direito à vida tem a singularidade de ser indistinguível de uma declaração de

renúncia ao direito, tornada definitiva pela circunstância de ser impossível a sua revogação futura. Tal reclama

máxima exigência quanto aos requisitos de validade desse exercício: tendo em conta a natureza

absolutamente irreversível e irremediável da decisão, o dever de proteção fundado na dimensão positiva da

liberdade geral de ação justifica restrições severas da sua dimensão negativa. O legislador tem de ter uma

convicção fundada na ponderação e firmeza da decisão de morrer para poder tomá-la como expressão de

autodeterminação pessoal e, nos casos de homicídio a pedido ou ajuda ao suicídio, outorgar validade ao

consentimento prestado a terceiro. Ora, esse grau de convicção não se verifica na generalidade das

circunstâncias em que alguém deseja pôr termo à vida. A experiência comum diz-nos que a vontade de morrer

é por norma irracional – irrefletida, precipitada ou desesperada −, uma vez que a vida é um pressuposto

empírico absoluto dos demais bens mundanos, que a existência pessoal é radicalmente indeterminada e que

os seres humanos não são omniscientes. Na esmagadora maioria dos casos, a tentativa de suicídio diz menos

sobre a ponderação que o sujeito faz sobre a sua existência do que sobre a sua incapacidade transitória para

formar uma decisão ponderada. E este dado da experiência comum é amplamente corroborado pelos estudos

que indicam que uma percentagem elevadíssima das pessoas que tenta suicidar-se – cerca de 90% − vem a

arrepender-se da sua decisão.

Creio ser este o verdadeiro fundamento constitucional da negação de um direito ao suicídio e da

incriminação da morte assistida. O legislador presume razoavelmente que a decisão de morrer não é

autodeterminada na proporção das suas consequências – irreversíveis e irremediáveis – no desenvolvimento

da personalidade do agente. A carência de proteção da dimensão positiva da liberdade de ação é tão grande

nestas circunstâncias que torna razoável a restrição mais severa da liberdade negativa – a negação absoluta

de um direito a pôr termo à vida e a incriminação geral da colaboração de terceiro na execução da decisão de

morrer. Mas não é única solução possível do ponto de vista constitucional. Tratando-se de um juízo de