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II SÉRIE-A — NÚMERO 97

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dignificante. Pelo contrário, no modo de convivência política a que chamamos democracia constitucional, a

vida humana não tem mais ou menos valor em razão das condições em que é vivida, do carácter de quem a

vive ou da sua duração expectável. Por outro lado, se fosse o peso da liberdade a aumentar nas

circunstâncias em que a lei vem a admitir a morte medicamente assistida, o legislador arrogar-se-ia o direito

de sindicar, julgar e discriminar as convicções existenciais e a identidade pessoal dos cidadãos, fazendo

depender o reconhecimento das suas decisões, não do respeito que lhe merece o exercício da liberdade, mas

do mérito que atribui a determinadas motivações e projetos individuais. Desse modo, ao estabelecer um

regime de «eutanásia com indicações» − condicionada a certas causas objetivas do foro somático −, o

legislador não estaria a respeitar a liberdade de ação do indivíduo, mas a assumir uma função dirigente no

desenvolvimento da sua personalidade. É evidente que isto seria contraditório com o princípio liberal em que

repousa o regime da morte medicamente assistida.

4. A terceira resposta possível – aquela que subscrevo – parte de uma premissa diversa: a disponibilidade

de princípio da vida como bem jurídico. A vida é juridicamente disponível mesmo que se conceda a ideia –

evidentemente controvertida numa sociedade pluralista – de que se trata de um valor incondicional, que ao

destruir a sua vida o agente está a desrespeitar a sua essência moral ou a violar o dever ético de conservação

do bem. Assim é porque não é possível coagir ninguém a respeitar a sua dignidade ou a comportar-se

eticamente: os valores interiores − como a bondade, a retidão, o respeito ou a caridade – não podem, por

natureza, ser realizados através da força, visto que esta atua sobre o agente como mero objeto, simples meio

para realizar um estado de coisas exterior considerado desejável. É uma contradição nos próprios termos

tratar alguém como simples meio em razão da sua condição de fim em si mesmo. Ao coagir o devedor a

cumprir a obrigação contratual, o empregador a não despedir sem justa causa ou o lesante a indemnizar os

prejuízos que causou, a autoridade pública garante os direitos do credor, do trabalhador ou do lesado. Estes

podem ser garantidos pela força. Mas a força não pode ser usada para garantir a dignidade do seu objeto: ao

negar a liberdade do agente, nega a condição sine qua non do seu êxito. Isto vale, quer para a coação no

sentido mais estrito – a execução forçada −, quer para sanções e outras formas mais ou menos subtis de

restrição da liberdade de escolha, como a proibição do auxílio prestado por terceiros. Por isso, numa ordem

constitucional baseada na dignidade da pessoa humana, todos os direitos fundamentais se têm de articular

com o direito mais geral e radical ao livre desenvolvimento da personalidade. A vida é objeto de um verdadeiro

direito de liberdade.

Pode pensar-se que este argumento prova de mais. A lei não manda punir a tentativa de suicídio, nem dela

se pode retirar que o suicídio seja um ato ilícito. Só que também não o concebe como um direito subjetivo. O

suicídio é permitido no sentido amplo, trivial e tautológico de que não é proibido. É legítimo que uma pessoa

tente impedir outrem de cometer suicídio e suponho que seja pacífico que um agente da autoridade tenha o

dever de o fazer. Mas se a vida é um bem disponível, se é objeto de um direito de liberdade, pode perguntar-

se se o legislador não estará obrigado a consagrar um direito ao suicídio e a admitir o consentimento como

causa de justificação nos crimes contra a vida, com a consequência inevitável de que os tipos incriminadores

constantes dos artigos 134.º e 135.º do Código Penal se devam ter por inconstitucionais. Pela mesma ordem

de razões, a intervenção de terceiro que dificulte o suicídio deveria ser caracterizada como conduta ilícita e a

autoridade pública, confrontada com uma tentativa de suicídio, deveria ter-se por vinculada a um simples

dever de abstenção. São consequências abomináveis.

Porém, este raciocínio baseia-se numa conceção redutora de liberdade. A liberdade geral de ação

compreendida no direito ao livre desenvolvimento da personalidade não se esgota na dimensão negativa. Na

cultura moral, política e jurídica ocidental o conceito de liberdade admite duas interpretações ou conceções

distintas. A liberdade no sentido negativo do termo é a liberdade de escolha, o arbítrio individual, a ação

desimpedida, a ausência de obstáculos: liberdade é o indivíduo fazer o que muito bem entender, sem prestar

contas a ninguém. É-se tão mais livre, neste sentido, quanto menor a resistência externa – e sobretudo de

terceiros, sejam eles particulares ou entes públicos – à ação individual. Esta liberdade negativa é anómica, na

medida em que não obedece a nenhuma norma objetiva, resumindo-se ao poder arbitrário do agente sobre um

determinado objeto – a vida, o corpo, uma coisa, a imagem, a intimidade, a comunicação, a saúde, entre

muitos outros.

A liberdade no sentido positivo – a segunda grande conceção – desenvolve-se a partir da interiorização da