O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

16 DE MARÇO DE 2021

89

noção de «norma completa» acolhida na decisão – sem deixar de notar que a questão da individuação das

normas é objeto de uma intensa e antiga controvérsia académica que o Tribunal Constitucional faria bem em

evitar −, não vejo como se possa afirmar que a decisão de inconstitucionalidade incide sobre uma única norma

extraída do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto, nem que «não seria concebível em sede de fiscalização abstrata

sucessiva que (…) a norma pudesse continuar a vigorar expurgada do critério então considerado

inconstitucional.» Atendendo ao facto de a maioria ter votado a inconstitucionalidade por o conceito de «lesão

definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico» ser excessivamente indeterminado, é

evidente que, se se tratasse de fiscalização abstrata sucessiva, manter-se-ia em vigor a norma que permite a

antecipação da morte medicamente assistida em caso de «doença incurável e fatal» − ou, se quisermos ser

totalmente rigorosos, das normas que permitem a antecipação da morte praticada, a primeira, ou ajudada, a

segunda, por profissionais de saúde, em caso de «doença incurável e fatal», desde que verificados os demais

pressupostos legais. Tudo isto teria ainda implicações quanto ao alcance das inconstitucionalidades

consequenciais. É claro que, tratando-se de fiscalização preventiva, o problema é destituído de relevância

prática – segundo o disposto no n.º 1 do artigo 279.º da Constituição, deverá o Presidente da República vetar

o diploma e devolvê-lo à Assembleia da República.

A decisão admite em termos muito restritivos a disponibilidade da vida, afirmando-se que – ao contrário do

que estranhamente se concede poder ser o caso noutras ordens constitucionais, como a alemã e a austríaca,

que não se distinguem no essencial da nossa em matéria de direitos fundamentais, e até no contexto do

sistema regional de proteção de direitos humanos sob a CEDH – «na ordem constitucional portuguesa o apoio

de terceiros à morte, mesmo que autodeterminada, não representa um interesse constitucional positivo». A

exceção a esta ideia de um dever geral «qualificado» de «proteção e promoção» da vida são os «casos em

que uma proibição absoluta da antecipação da morte com apoio de terceiros determinaria a redução da

pessoa que pretende morrer, mas não consegue concretizar essa intenção sem ajuda, a um mero objeto de

tratamentos verdadeiramente não desejados ou, em alternativa, a sua condenação a um sofrimento sem

sentido face ao desfecho inevitável.» Nesses casos – diz-se − «não está em causa uma escolha entre a vida e

a morte», mas entre «um processo de morte longo e sofrido» e «uma morte rápida e tranquila». Para além de

me parecer que esta posição é essencialmente indefensável – pelas razões que aduzi a respeito da ideia geral

de uma ponderação entre a vida como valor objetivo e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade −,

não consigo vislumbrar como é que, dadas estas premissas, que aliás se diz consubstanciarem uma «linha de

princípio orientadora» e até uma «diretriz», a permissão da antecipação da morte nos casos de «lesão

definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico» não é inconstitucional por força da

inviolabilidade da vida humana. Com efeito, excluídas as situações de «doença incurável e fatal», decorre da

«diretriz» fixada na decisão que a antecipação da morte só poderia ser admitida em caso de lesão definitiva e

fatal – um conceito claramente menos extenso do que o que consta do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto.

Ao afirmar simultaneamente a necessidade constitucional de uma delimitação restritiva dos casos de

antecipação da morte medicamente assistida – no quadro de um «sistema legal de proteção orientado para a

vida» − e a «insuficiente densificação normativa» do conceito de «lesão definitiva de gravidade extrema»,

dando como exemplos conceitos legais ostensivamente mais extensos (como «lesão incapacitante» ou

«situação de dependência»), creio que a maioria impõe ao legislador um ónus demasiado pesado. Embora

acompanhe a ideia de que o «consenso científico» para o qual a lei remete a concretização do conceito de

«lesão definitiva de gravidade extrema» é perfeitamente espúrio – a decisão sobre a suficiente gravidade da

lesão deve ser informada pela ciência, mas em última análise é de natureza judicativa −, tenho a maior

dificuldade em entrever que outros conceitos o legislador poderia ter usado «sem perder plasticidade». Com

esta decisão de inconstitucionalidade, a aprovação de um regime satisfatório neste domínio, para além dos

casos de doença incurável e fatal – uma delimitação que julgo ser arbitrária −, será um desafio de dificuldade

comparável a fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha. Acresce que o uso de conceitos mais

precisos, ainda que porventura vantajoso no plano da segurança jurídica, pode bem suscitar delicados

problemas de igualdade e de proporcionalidade, que não deixarão de convocar o escrutínio do juiz

constitucional. O legislador será forçado a navegar entre Cila e Caríbdis.

Por fim, creio que com esta decisão o princípio da determinabilidade das leis transforma-se num

significante à deriva na jurisprudência, aliado conveniente na administração de uma justiça constitucional

refugiada no casuísmo. A distância real entre a presente decisão e um juízo de inconstitucionalidade com