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II SÉRIE-A — NÚMERO 97

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restringe severamente a liberdade de a praticar, só podendo fazê-lo com fundamento no dever de proteger um

bem jurídico com expressão constitucional; e sempre que legaliza uma conduta até aí punida, alarga a esfera

de liberdade dos agentes, seja por reconhecer que a incriminação era ilegítima ou desnecessária, não

correspondendo a nenhum dever efetivo de proteção, seja por atribuir, nas circunstâncias em que deixa de

punir a conduta, maior peso à liberdade individual do que ao dever de proteção. Por isso, para se

compreender o regime da «antecipação da morte medicamente assistida», é indispensável perguntar pelo

fundamento constitucional da punição dos factos previstos no n.º 1 dos artigos 134.º e 135.º (segunda parte)

do Código Penal.

São essencialmente três as respostas possíveis a tal questão.

2. A primeira resposta é a de que a punição do homicídio a pedido da vítima e da ajuda ao suicídio se

baseia no dever estatal de proteção da vida como valor objetivo e bem indisponível. Ao contrário dos direitos

de liberdade – diz-se −, como a liberdade de expressão ou o direito de deslocação, o direito à vida não admite

o exercício negativo. Trata-se de uma forma elíptica de dizer que o n.º 1 do artigo 24.º da Constituição impõe

ao titular do direito, nos casos em que este queira morrer, um dever de viver – que a vida não é um bem

disponível, mas um valor objetivo confiado à curadoria do portador. Por isso, o consentimento do lesado não

pode em caso algum operar como causa de justificação nos crimes contra a vida. O legislador pode abster-se

de incriminar a tentativa de suicídio, por razões de política criminal, mas tem toda a legitimidade – senão

mesmo a obrigação – de incriminar o auxílio prestado por terceiros na execução da decisão pessoal de pôr

termo à vida. E está-lhe absolutamente vedada a legalização da morte assistida, ou seja, a previsão de

circunstâncias em que o ato de disposição da vida própria corresponde ao exercício de um direito. Esta

posição implica, como é bom de ver, a proscrição constitucional do suicídio medicamente assistido e da

eutanásia voluntária ativa.

Há dois argumentos comuns a favor desta tese, nenhum dos quais me parece convincente.

O primeiro baseia-se no teor do enunciado constitucional deste direito («[a] vida humana é inviolável»),

supostamente indicativo de uma decisão constituinte no sentido do valor absoluto − ou, pelo menos, do

carácter absolutamente indisponível – da vida humana. Ora, ainda que se aceitasse a conceção da

interpretação constitucional subjacente a este argumento – a que me oponho de modo enfático, pelas razões

constantes da declaração de voto que subscrevi no Acórdão n.º 464/2019 −, conceção essa levada aqui ao

extremo insólito de se supor que a norma constitucional que consagra o direito fundamental como um todo tem

o alcance que resulta das palavras escolhidas pelo legislador constituinte para o expressar e não o que releva

do conteúdo do direito humano homólogo − ainda assim, dizia, me parece um argumento manifestamente

inviável. Basta atentar em que no n.º 1 do artigo 25.º se usa de idêntica semântica a respeito do direito à

integridade pessoal («[a] integridade moral e física é inviolável»), sem que ocorra a ninguém retirar daí o

argumento bizarro de que o corpo é um bem absolutamente indisponível, e que por isso é inválido o

consentimento prestado pelos cidadãos aos barbeiros, esteticistas, fisioterapeutas, cirurgiões e outros

profissionais cujos serviços interferem regularmente no gozo da sua integridade física. Tenho por certo que do

notabilíssimo enunciado no n.º 1 do artigo 24.º não se pode retirar nenhuma consequência relevante quanto ao

conteúdo do direito fundamental.

O segundo argumento é o de que o consentimento do lesado, nos casos de destruição da vida, é por

natureza nulo, seja porque a vida é um pressuposto necessário da liberdade – de tal modo que a liberdade de

dispor da vida contradiz o seu próprio pressuposto −, seja porque, nas circunstâncias em que é praticado,

mormente uma situação de sofrimento intolerável, o ato de disposição da vida não pode ser verdadeiramente

livre. Creio que ambos os argumentos são falaciosos. O primeiro baseia-se no uso ambíguo do termo

«pressuposto»: a vida é seguramente um pressuposto empírico da liberdade – como são, se bem que em

medida relativa, a saúde, a instrução, a habitação e o rendimento −, mas não é, como se pretende firmar

através deste argumento, um pressuposto transcendental. É possível que as declarações de vontade,

«renuncio à minha liberdade», «obrigo-me a ser escravo» ou «alieno a minha pessoa», encerrem contradições

performativas – por negarem o fundamento último da sua validade (a personalidade do declarante) −, mas

nada há de contraditório nas declarações de vontade, «renuncio a viver» ou «quero morrer». A

indisponibilidade da vida não é nenhuma necessidade lógica. E não o sendo, resta saber por que razão este

direito fundamental – e apenas ele − compreende um entranho dever de exercício, corolário da sua resistência