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II SÉRIE-A — NÚMERO 97

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sentido de regular o fim da vida. De facto, se nas situações em que uma pessoa depende de apoios externos

para sobreviver pode fazê-los cessar sem ter, sequer, que se explicar, o que justifica que alguém que se

encontre em circunstâncias de idêntico (e extremo) sofrimento, mas tenha o infortúnio de sobreviver

naturalmente, não o possa fazer? Há (ou deve haver) uma diferença inultrapassável, em situações

determinadas, entre deixar morrer e ajudar a morrer? A resposta – e a linha divisória – não deve caber senão

ao legislador democrático.

S. Rodotà (inLa Vita e le Regole, 1.ª edição online, G. Feltrinelli Editore, Milano, 2018), considerando a

transformação do auxílio ao suicídio ou do homicídio a pedido da vítima num facto social (questão a que é

dada grande relevância no Acórdão) fala-nos da redescoberta «de uma condição humana e de uma

sensibilidade difusa e profunda, de uma empatia entre o morrente e as pessoas que o acompanham no tempo

extremo da vida, com a assunção da responsabilidade de tornar possível a morte, ditada não pela piedade,

mas por afeto. A condição humana e a partilha de um destino encontram aqui uma das suas manifestações

mais intensas». Neste sentido, alerta-se para o facto de as figuras do suicídio e do homicídio se revelarem

manifestamente desadequadas, neste plano, já que se trata de situações existenciais, éticas e jurídicas

totalmente distintas do que aqui se trata – que é das condições extremas de quem pede uma morte que vê

como digna e do exercício de autodeterminação e autonomia no final de um percurso vital. É nestes momentos

difíceis, em que as regras jurídicas encontram a vida, que o direito cumpre o seu papel racionalizador,

equalizador e garantístico (designadamente, estabelecendo firmes e rigorosas garantias procedimentais de

expressão e verificação da vontade). No entanto, a condição das pessoas em processo de fim de vida deve

ser «tomada em consideração na sua inteireza e complexidade, sem que no seu interior se admitam distinções

que alterem a igualdade de cada um diante da morte. A dimensão constitucional conjuga-se com a dimensão

existencial, suportando-a» (S. Rodotà, cit.).

4. O Acórdão estabelece um standard de determinabilidade, em sede de causas de justificação, no

plano penal, divergente do até aqui aceite como constitucionalmente conforme.

Por último, o Acórdão estabelece, no nosso entender, um standard de determinabilidade, em sede de

legislação penal que se afigura não só divergente do que até aqui tem sido aceite como

constitucionalmente conforme, como, ainda, potencialmente problemático.

Partimos, nesta matéria, de uma premissa fundamental, até aqui sempre afirmada pelo Tribunal, em inteira

sintonia com a doutrina: a Constituição não impõe obrigações constitucionais de criminalização. Ou seja, não

há nenhum bem jurídico constitucionalmente protegido que a CRP entenda que deve necessariamente ser

protegido através da legislação penal. Esta, configurando uma solução de ultima ratio, deve ser mobilizada

sempre que o legislador entenda que não existe outra maneira de proteger adequadamente o bem ou direito

em causa. Mas não tem que o ser, por imposição do legislador constituinte.

Contudo, a verdade é que o legislador português entendeu manter a criminalização do auxílio ao suicídio e

do homicídio a pedido da vítima, condutas tipificadas e punidas nos artigos 134.º e 135.º do Código Penal, e

para as quais se prevê idêntica moldura penal, revelando terem, na ótica legislativa, idêntico desvalor. Trata-

se, como o Acórdão bem reconhece, de crimes de perigo abstrato, justificados pela necessidade de proteger a

vida contra decisões apressadas, precipitadas ou condicionadas. Mas, também, de tipos privilegiados face ao

crime (central) de homicídio. Seguindo a reflexão de Costa Andrade ali citada, entendeu o legislador haver

situações concretas em que – face a uma perda irreversível de sentido na continuação da vida, motivada pela

proximidade incontornável da morte ou pelo caráter incontrolável e insuportável do sofrimento suportado –

deve prevalecer o exercício da autodeterminação no sentido de pôr termo à vida, por se afigurar, no sentir

comunitário, como «objetivamente razoável». Situamo-nos, pois, do ponto de vista penal, no âmbito da criação

de uma causa de justificação, complexa, que exclui a ilicitude de tais condutas (e não a culpa do agente,

sendo desajustado o paralelo com a figura do estado de necessidade desculpante, acolhida no artigo 35.º do

Código Penal, que se procura estabelecer no Acórdão), em circunstâncias estritas e pré-determinadas.

Neste quadro – e após esclarecer que a norma em causa deve ser fiscalizada «por referência aos

parâmetros constitucionais aplicáveis às normas disciplinadoras da atividade restritiva ou reguladora de

direitos fundamentais», designadamente «o princípio da determinabilidade das leis, enquanto corolário do