O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

II SÉRIE-A — NÚMERO 97

74

parece que assim seja. Não existe diferença substancial entre o fundamento constitucional dos direitos à vida,

ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação e liberdade pessoais, consagrados na CRP,

e as disposições normativas em que se baseiam densificações e leituras jurisprudenciais muito distintas da

que a maioria acolhe. Sustentar o inverso – fundando na letra da norma constitucional um paradigma distinto –

equivale, no nosso entender, a reconhecer que, então, bastaria uma alteração da formulação constitucional

concreta plasmada na CRP, que explicitasse a dimensão jus-subjetiva da vida (substituindo a norma vigor por

outra que afirme que todos têm direito à vida), em detrimento da sua dimensão axiológico-valorativa, para que

estivessem ultrapassadas parte das objeções levantadas pela maioria às normas questionadas no presente

processo. Não é assim. O que se passa é que, numa matéria difícil e sensível como esta, com implicações

éticas, filosóficas e religiosas, e na qual estão em causa a vida e a morte, a liberdade, a dignidade e a

solidariedade humanas, mundividências distintas conduzem a leituras opostas das normas constitucionais.

Contudo, julgamos que é maior a solidez dogmática da nossa visão, e que ela se enquadra melhor naquele

que é, hoje, o panorama de direito comparado. Isto é tanto mais importante quanto, como acima se deu nota,

não está em causa uma qualquer idiossincrasia constitucional, fruto de um espaço e de um tempo particulares,

e caraterística inelutável de uma identidade constitucional distinta, mas sim as pedras-de-toque de um

património constitucional partilhado, os direitos fundamentais que constituem o pilar de um direito

constitucional comum europeu, em sentido Häberliano.

Uma digressão pelo direito comparado revela, aliás, uma óbvia e notória evolução quanto às questões aqui

tratadas. Mostra também uma crescente convergência, fruto de uma reflexão e de um diálogo jurisprudencial

de décadas (veja-se a significativa jurisprudência do TEDH a este respeito), bem como da evolução das

conceções sociais sobre vida, fim de vida, e qualidade de vida, e também sobre a morte e o processo de

morrer. Estas reflexão e evolução foram impulsionadas pela necessidade de uma resposta jurídico-normativa

sobre o tempoeo modo de morrer, em particular em situações para as quais a evolução científica e

tecnológica gerou possibilidades de prolongamento da vida que até há pouco o curso das leis da natureza

impossibilitava. Tal não implica qualquer diminuição da importância ou do sentido ético, filosófico, político,

social e jurídico da existência humana. Implica, sim, uma determinada compreensão do significado de ser

pessoa e da centralidade da autodeterminação da vontade e do consentimento individuais, na modelação do

caminho entre a vida e a morte.

Assim, recordem-se as questões – diversas entre si, mas com uma linha comum – com as quais foram

confrontados distintos tribunais constitucionais europeus e que se reconduzem exatamente ao oposto do

problema que hoje se coloca a este Tribunal Constitucional. Enquanto que aqui se questiona se são

constitucionalmente conformes o se (tendo em conta o alargamento do objeto operado) e o como (problema

em que se centra o pedido do requerente) da legalização (mediante a introdução de causas de justificação de

certas condutas médicas, no domínio penal, e de uma procedimentalização da expressão pública da vontade

do paciente em sofrimento intolerável, que atuam no sistema normativo que o Decreto institui como faces da

mesma moeda), decidida pelo legislador democrático, da morte medicamente assistida (nas modalidades de

auxílio ao suicídio e de homicídio a pedido da vítima), noutras geografias colocou-se a questão de saber se é

admissível, à luz das respetivas constituições, a criminalização total do auxílio ao suicídio. A essa pergunta,

responderam os tribunais constitucionais alemão, austríaco e italiano em sentido negativo. Fizeram-no com

alcances e fundamentações distintas, quanto a pontos importantes. No entanto, isso não justifica o

afastamento, sem mais, que no Acórdão se faz da relevância da construção de standards comuns nesta

matéria. Desde logo, porque a decisão do legislador português de manutenção da regra de incriminação do

auxílio ao suicídio e do homicídio a pedido da vítima em nada desmente que a reflexão em torno da importante

tensão entre vida e autonomia que está na base das decisões de outros tribunais seja mobilizada, com enorme

utilidade, para a presente decisão. Uma coisa é discordar, fundamentadamente, das decisões de tribunais que

o Tribunal Constitucional português habitualmente toma em consideração. Outra é afastá-las, com

simplicidade, quase de plano, dizendo que não está em causa o mesmo problema. Está. Ainda que sob

enquadramento jurídico-penal distinto (naturalmente, as incriminações vigentes nos vários ordenamentos não

são iguais, colocando do lado da dogmática penal inquietações próprias a cada um), a problemática

jusfundamental de fundo é exatamente a mesma.

Assim, o Bundesverfassungsgericht (BVerfG, Acórdão de 26 de fevereiro de 2020 – 2 BvR 2347/15)