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16 DE MARÇO DE 2021

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a Constituição não só consagra o direito à vida com a impressividade correspondente à sua condição de

«pressuposto fundante de todos os demais direitos fundamentais» (ponto 30. do Acórdão), como vincula o

Estado ao compromisso permanente de o defender em termos que podem dizer-se avessos à opção por uma

ordem jurídica que conferisse a cada membro da comunidade permissão para provocar ou colaborar na morte

de qualquer outro, desde que capaz, com base na existência de um pedido sério, instante e expresso. Um

compromisso que se funda, é certo, na proteção e promoção da vida humana como um bem, enquanto valor

objetivo e princípio estruturante do Estado de Direito, mas na base do qual derradeiramente se encontra a

conceção da pessoa não apenas como um ser-aí – o eu isolado e solitário –, mas também como um ser-com-

os-outros – alguém que, sendo filho(a), pai/mãe, irmão(ã), amigo(a) e ou companheiro(a), também existe e

vive nos outros. É a partir desse compromisso, que impõe ao legislador a adoção de um «sistema legal de

proteção orientado para a vida» e o inibe de se posicionar neutralmente perante esta, que se traça também, no

domínio das autolesões e heterolesões consentidas, o limite mínimo da discricionariedade legislativa imposto

pela proibição do défice ou da insuficiência.

Nos pontos seguintes, procurarei explicar como, em minha opinião, estes dois limites, mínimo e máximo, se

articulam – e, sobretudo, qual o juízo a que deverão conduzir – em face do regime de antecipação da morte

medicamente assistida não punível constante do Decreto.

3. Perguntar qual é o bem jurídico protegido através da incriminação do homicídio a pedido da vítima (artigo

134.º do Código Penal) e da ajuda material ao suicido (artigo 135.º do mesmo Código) é o mesmo que

perguntar pela razão que determina a ineficácia justificativa do consentimento no âmbito dos crimes contra a

vida: independentemente da sua firmeza, do seu grau de convicção ou do nível de reflexão que lhe esteja

subjacente, o consentimento constitui, até hoje, uma condição sem qualquer tipo de projeção ou relevância no

plano das dirimentes da responsabilidade pela lesão do direito à vida.

A primeira razão para que assim seja prende-se com a objetiva impossibilidade de, mesmo através da

exigência de um consentimento qualificado – isto é, aquele que se expressa na formulação de um pedido

instante –, reconhecer na decisão de quem procura a colaboração de terceiros para concretizar a antecipação

do fim da vida um grau de verdade, de resolução e de firmeza congruente com a irreversibilidade do resultado

consentido. Sabendo-se que a decisão de pôr termo à vida é as mais das vezes determinada por uma

condição psicologicamente relevante – a mais frequente das quais a depressão –, que compromete a

capacidade para consentir na sua lesão (Bundesverfassungsgericht, decisão de 26 de fevereiro de 2020,

parágrafo 245), pode dizer-se que a incriminação tanto do homicídio a pedido da vítima, como do auxílio

material ao suicídio, assentam, ainda que em diferente medida, na «presunção legal de precipitação e falta de

‘amadurecimento subjetivo’» por parte do respetivo titular (neste sentido, ainda que a propósito apenas do

crime de homicídio a pedido da vítima, Manuel da Costa Andrade, «Comentário ao artigo 134.º», § 15, p. 104,

in Figueiredo Dias (dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora,

Coimbra, 2012). Embora tal presunção seja mais forte no primeiro caso do que no segundo, ambos os tipos

legais relevam do «propósito de prevenir o perigo (abstrato) de uma decisão apressada e precipitada pelo

termo da vida» (idem, «Comentário ao artigo 135.º», § 12, p. 139).

A segunda razão prende-se com o próprio compromisso a que a Constituição vincula o legislador no

sentido da proteção e promoção da vida humana, mesmo perante decisões refletidas e ponderadas. Ainda que

na opção pela antecipação da morte motivada pelo simples cansaço de viver fosse possível identificar, com

infalibilidade máxima, um nível de determinação congruente com a irreversibilidade do resultado gerado pela

sua concretização, a legitimidade material da incriminação do homicídio a pedido da vítima e do auxílio

material ao suicídio continuaria a poder afirmar-se por referência ao valor da vida humana, mantendo na

ligação a este bem o seu imprescindível referente axiológico. Do ponto de vista da necessidade de tutela

penal, o sentido da proibição penal quer da ablação consentida da vida de outrem, quer da colaboração no ato

suicidário do seu titular, continuaria a poder discernir-se na diminuição das possibilidades de concretização da

decisão de antecipação do fim que deriva da exclusão da liberdade de qualquer ação causal ou colaborativa

de terceiros.

4. Do ponto de vista jurídico-penal, a principal novidade do regime de antecipação da morte medicamente

assistida não punível consiste na atribuição de eficácia ao consentimento no âmbito dos crimes contra a vida.