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II SÉRIE-A — NÚMERO 97

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2. Ao afirmar que a vida humana é inviolável, o artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, vincula o Estado de uma

dupla forma: negativamente, impondo-lhe uma proibição de agressão ou de ingerência; positivamente,

exigindo dele a criação e manutenção dos pressupostos de facto e de direito necessários à defesa ou à

satisfação do direito fundamental que lhe corresponde. Uma vez que a proclamação constitucional da

inviolabilidade da vida humana compreende o direito a não ser morto tanto pelo Estado como pelos demais

membros da comunidade, cada cidadão terá, frente ao Estado, o direito a que este proteja a sua vida perante

intervenções arbitrárias de terceiros. O cumprimento do imperativo constitucional de tutela da vida humana

vincula o Estado à realização de prestações tanto fácticas como normativas, nestas se incluindo a proteção

através da edição de normas de direito penal ou da criação de normas de organização e de procedimento

(Robert Alexy, Teoria dos Direitos Fundamentais, Tradução de Virgílio Afonso da Silva, Malheiros Editores,

2008, pp. 196 e ss. e 442). Embora a escolha do tipo de proteção que deve de ser em concreto realizada seja

«algo que ‘em primeira linha’, ‘em grande medida’ ou ‘em essência’, cabe ao legislador» ordinário (idem, p.

463, referindo-se às formulações recorrentemente adotadas pelo Bundesverfassungsgericht), a liberdade de

conformação que lhe assiste é sempre exercida no interior de uma espécie de moldura cujo limite máximo é

dado pela proibição do excesso de proteção – medido pelo nível de afetação a que o instrumento de proteção

escolhido sujeita certo (outro) direito fundamental – e cujo limite mínimo corresponderá à proibição da proteção

deficitária ou insuficiente.

No domínio da proteção penal da vida humana perante formas de autolesão e de heterolesão consentidas,

o limite máximo correspondente à proibição do excesso é traçado a partir do direito à autodeterminação

individual e à livre conformação da vida. A primeira função que tal limite desempenha é a de vedar ao

legislador uma compreensão de tal forma radical do seu mandato constitucional de proteção e promoção da

vida humana, que pudesse originar a eliminação de qualquer espaço para o exercício da liberdade e da

capacidade de autodeterminação individual dos respetivos titulares ou, como se afirma no Acórdão, conduzir

ao esmagamento da «autonomia de cada ser humano para tomar e concretizar as decisões mais centrais da

sua própria existência». Dele decorre para o legislador a impossibilidade do recurso a mecanismos de

promoção e proteção a um tal ponto orientados para a defesa da vida humana em oposição à vontade

autodeterminada do sujeito que a titula que acabem não só por desligar a vida protegida da proteção do sujeito

que é seu titular, como ainda, na relação que estabelecem entre aquela e este, por converter ou reduzir a

pessoa a um «instrumento para a preservação da vida como valor abstrato» (Tribunal Constitucional da

Colômbia, Sentencia C-239/97). A segunda função desempenhada pelo limite máximo situa-se no plano da

intervenção causal ou concorrente de terceiros no processo de concretização da decisão de antecipação da

morte. Se o direito à autodeterminação inerente à condição da pessoa como sujeito moral e autónomo é

contrário à ideia de que cada indivíduo se encontra obrigado a aguardar resignadamente pelo sobrevir natural

do seu fim, o limite que a partir dele se traça não só exclui a possibilidade de punição dos atos de renúncia

praticados pelo próprio titular – ao qual assiste o «indeclinável direito de dar à sua vida o destino que quiser,

como e quando quiser» (Jorge de Figueiredo Dias, «A ‘ajuda à morte’: uma consideração jurídico-penal» in

Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 137.º, Ano 2007-2008, n.º 3949 (março-abril de 2008), pp. 202

e ss., p. 205) –, como abre ainda espaço ao reconhecimento de situações em que, ao menos por estar em

causa um efetivo direito a morrer com dignidade, a proteção da vida humana não poderá mais efetivar-se

através do nível de redução das possibilidades de concretização da decisão de antecipação do seu termo que

deriva da proibição penal de todo o tipo de intervenções consentidas de terceiros.

Se o limite máximo colocado pelo direito à autodeterminação, enquanto expressão direta da dignidade da

pessoa humana, tem como primeira função, segundo vimos, vedar ao legislador uma compreensão

transpersonalista do mandato constitucional de proteção da vida humana – legitimadora, em última instância,

da incriminação da própria tentativa de suicídio –, o limite mínimo da moldura de discricionariedade legislativa,

que se traça diretamente a partir do artigo 24.º da Constituição, tem por efeito o afastamento da compreensão

oposta. Isto é, da compreensão segundo a qual a decisão pela qual cada um opta por pôr termo à sua vida lhe

pertence em termos de tal modo exclusivos, soberanos e absolutos que o Estado deverá pura e simplesmente

abster-se de criar qualquer tipo de obstáculo ou condicionamento prático à sua concretização, em especial

aqueles que derivam da limitação da liberdade de atuação de quem se ofereça para causar ou ajudar a causar

a morte de outrem em face de um pedido livre, esclarecido e sério. Ao declarar que a vida humana é inviolável,