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II SÉRIE-A — NÚMERO 97

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decorrente da introdução de variáveis desvaliosas («perigosas», ao «poluir» a tomada de decisão) no

processo decisório que se venha a desencadear. Algo paradoxalmente, «[d]ispor de escolhas pode, em última

análise, privar alguém de resultados desejáveis, cujo caráter vantajoso dependa da circunstância de não

serem escolhidos, por inexistir a opção deles […,] em suma, uma vez oferecida uma nova possibilidade de

escolha cuja essência é problemática, a situação do destinatário já se alterou, e alterou-se para pior: mesmo

escolhendo o que valorativamente é melhor não pode, na realidade, remediar o que a nova situação criada

tem de inconveniente, comparativamente à situação anterior. Escolher o que é melhor nesses casos

representa apenas uma forma de evitar perdas.»33

.

2.3.1. A pergunta que se impõe é a seguinte: o que é que isso envolve quando a opção (a nova opção)

que se coloca à disposição de alguém (do universo das pessoas elegíveis, no quadro do Decreto n.º

109/XIV) é a eutanásia ou o suicídio assistido?

No que tem o sentido de uma resposta, recorremos a uma observação de Thomas Schelling, através da

qual exemplifica a manifestação do paradoxo da vantagemestratégica: «[q]ue a posição de alguém pode ser

dolorosamente enfraquecida pela existência de novas opções legais é fortemente sugerido, de forma

impressivamente pungente, por um dos argumentos apresentados contra a legalização da eutanásia:

concedendo a enfermos incuráveis e desesperados o direito de autorizar a sua própria morte: ‘[q]ual … seria

o efeito dessa opção sobre pessoas idosas com doenças incuráveis e fortemente limitadoras, que já

suspeitam que as pessoas ao seu redor querem livrar-se delas?’ […]»34

. Fugindo à crueza da pergunta final,

diremos que a opção da própria morte (legalmente enquadrada, socialmente organizada), passando a

integrar o leque de alternativas disponíveis, passa a estar presente na ponderação das alternativas que os

desafios da doença grave coloquem ao paciente. E isso sucederá, tanto para quem (no papel, algo

idealizado, construído por algumas jurisdições constitucionais a este respeito) configure essa ponderação

como um espaço de liberdade e de autodeterminação na condução da sua vida, como para quem, na dura

realidade do fim da vida, ou da vida dependente e sem esperança aparente, o que realmente pondere, e o

que realmente o motive, seja o que lhe aporta a angústia e o desespero criados por fatores exógenos de

pressão. Efetivamente, a transposição da situação antes caraterizada para o processo da tomada de

decisões quanto ao fim da vida de quem, encontrando-se em situação de grande vulnerabilidade física e

psíquica – em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o

consenso científico ou doença incurável e fatal –, em nada nos garante a presença, para quem encare as

coisas nesses termos, da «vantagem» de uma escolha livre – do respeito que é devido a uma escolha livre –

permitindo uma relativização tão expressiva – ao ponto da intolerabilidade – da inviolabilidade da vida

humana, conduzindo, enfim, à quebra da barreira protetiva erigida pelo artigo 24.º da CRP em torno do valor

da vida.

O problema é que essa relativização da vida humana – a diminuição do valor intrínseco desta – atua

frequentemente de forma insidiosa, criando, em situações de grande dependência, uma espécie de ónus

subliminar de justificar a própria existência – «[o] ónus de justificar a própria existência pode tornar a

existência insuportável e, consequentemente ‘injustificável’.»35

. Ora, e é este o problema central com o qual

nos confronta a existência de uma regulamentação legal da morte a pedido, «[…] oferecer a opção de morrer

a alguém [estamos a falar de pessoas gravemente doentes e dependentes] pode corresponder a dar-lhe

novas razões para morrer.»36

. Aliás, olhando para o procedimento criado pelo Decreto n.º 109/XIV, não deixa

de ser pertinente a interrogação: «[q]uem pode saber ao certo se o pedido, mesmo formulado por escrito [da

antecipação da morte], é ou não o resultado de uma aceitação resignada de um desejo pressentido nos

familiares e noutras pessoas próximas do paciente? Como é possível ter certeza de que a solicitação não

resulta de uma depressão remediável ou se baseia numa visão irreal do diagnóstico ou do prognóstico?

Todas estas questões podem surgir nestas situações [ – vamos confiar que os intervenientes serão exatos

nas respostas que derem ao longo do processo na perceção da realidade – ], importando não esquecer que

a morte de um paciente será determinada pelas respostas.»37

.

33

Ibidem, p. 11. É a este respeito que Thomas Schelling, fala de um «paradoxo da vantagem estratégica» que expressa, na realidade, uma desvantagem que desvirtua, poluindo-o, o processo decisório (The Strategy of Conflict, cit., pp. 158-160). 34

Ibidem, p. 160, nota 30. 35

J. David Vellman, Beyond Price…, cit., p. 13. 36

Ibidem, p. 15. 37

Sissela Bok, «Euthanasia», in Euthanasia and Physician-Assisted Suicide, Gerald Dworkin, R. G. Frey, Sissela Bok, Cambridge