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II SÉRIE-A — NÚMERO 97

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fórmula cuja força nos permite referir a afirmação de inviolabilidade como particularmente qualificada –

porventura situada, se alguma referência foi procurada na Lei Fundamental da República Federal da

Alemanha, algures a meio caminho entre a intangibilidade (unantastbar) da dignidade da pessoa humana12

e a

inviolabilidade (unverletzlich) afirmada no artigo 2.º (2) desse texto constitucional13

. Daí que, uma maior

proximidade ao legislador histórico (ao contexto histórico da construção dessa disposição) tenha conduzido J.

J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na 1.ª edição (1978) da Constituição Anotada, à afirmação de uma

natureza absoluta da proteção do direito à vida: «[o] valor do direito à vida e a natureza absoluta da proteção

constitucional traduz-se no próprio facto de se impor mesmo perante a suspensão constitucional dos direitos

fundamentais, em caso de estado de sítio ou de estado de emergência […]»14

. E continue, na edição mais

recente da Obra, a suportar a caraterização do direito à vida como «[n]ão se [tratando] apenas de um ‘prius’

lógico […]», sendo antes, «[…] material e valorativamente[,] o ‘bem’ (localiza-se, logo, em termos ontológicos

no ter e ser vida, e não apenas no plano ético-deontológico do valor ou no plano jurídico axiológico dos

princípios) mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu

conjunto. Precisamente por isso é que o direito à vida coloca problemas jurídicos de decisiva relevância nas

comunidades humanas.»15

.

E, enfim, essa mesma especial qualificação do artigo 24.º é sublinhada por Rui Medeiros e Jorge Pereira

da Silva: «[a] Constituição portuguesa não se limita, ao contrário de outros textos fundamentais e da própria

DUDH, a dizer que ‘todos os homens têm direito à vida’, afirmando antes, numa fórmula normativa muito mais

forte e expressiva, que ‘a vida humana é inviolável’ [ênfase no original]. O artigo 24.º desempenha, entre os

direitos fundamentais, um papel absolutamente ímpar. Membro do ‘clube restrito’ dos direitos insusceptíveis de

suspensão (n.º 6 do artigo 19.º), o direito à vida surge consagrado […] não apenas na sua dimensão

puramente subjectiva, como primeiro dos direitos fundamentais – mais do que um direito, liberdade e garantia,

ele constitui o ‘pressuposto fundante’ de todos os demais direitos fundamentais –, mas como valor objetivo e

como princípio estruturante de um Estado de Direito alicerçado na dignidade da pessoa humana (artigo 1.º)»16

.

A vida humana, naquela dimensão objetiva, enquanto valor cuja proteção é (não só consagrada em função

da vontade individual e interesses próprios do seu titular mas também) consagrada em função de valores

comunitários que lhe estão associados em razão da sua natureza de bem supremo da comunidade –

confirmada pela insusceptibilidade de suspensão – convoca e legitima, quanto ao Estado, deveres de respeito

e de proteção – de cada vida e na sua articulação com as demais – mas tão-só da própria vida, não operando

aqueles quanto – não permitindo – [a]o direito à morte. Como afirmam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,

«A Constituição não reconhece qualquer ‘vida sem valor de vida’ nem garante decisões sobre a própria

vida.»17

.

O texto constitucional, quanto à insusceptibilidade de suspensão do direito à vida (de afetação pela

declaração do estado de sítio ou do estado de emergência, como o que vigora no presente) não deixa de

transparecer a influência e a axiologia valorativa do Direito internacional, em que, como sublinha a doutrina, o

direito à vida já integra o «muito reduzido» «núcleo duro dos direitos do homem» comum a três das principais

convenções em matéria de proteção de direitos humanos (todas anteriores à Constituição de 1976), enquanto

«direitos intangíveis», insuscetíveis de derrogação (ou suspensão) e suscetíveis de elevação à posição de

‘Constituem direitos e liberdades individuais do cidadão português (…) o direito à vida e à integridade física.’ [artigo 12.º, 1.º]. O do PS: ‘É garantido o direito à vida e integridade física.’ [artigo 11.º, n.º 1]. O do MDP/CDE e da UDP nada diziam. O do PPD afirmava: ‘O Direito à vida e à integridade pessoal é inviolável’ [artigo 17.º]. Foi o do PCP a propor a proclamação consagrada: ‘A vida humana é inviolável’ [artigo 30.º, n.º 1] […]» (os textos dos projetos constitucionais em causa estão disponíveis em: https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dac/01/01/01/016S1/1975-07-11). 12

«A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público.» [artigo 1.º (1)]. 13

«Todos têm o direito à vida e à integridade física. A liberdade da pessoa é inviolável. Estes direitos só podem ser restringidos em virtude de lei.» (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, versão alemã de 23 de maio de 1949, última atualização em 28 de março de 2019, texto disponível em www.bundestag.de). 14

Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Coimbra, 1978, p. 92. 15

J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, CRP. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 447 – «[j]urídico-constitucionalmente, não existe o direito à eutanásia activa […,] [r]elativamente à ‘ortotanásia’ (‘eutanásia activa indirecta’) e ‘eutanásia passiva’ – o direito de se opor ao prolongamento artificial da própria vida – em caso de doença incurável (‘testamento biológico’, ‘direito de viver a morte’), podem justificar regras especiais quanto à organização dos cuidados e acompanhamento de doenças em fase terminal (‘direito de morte com dignidade’), mas não se confere aos médicos ou pessoal de saúde qualquer direito de abstenção de cuidados em relação aos pacientes (cfr. Resolução sobre a Carta dos direitos do doente do Parlamento Europeu, de 19/01/84). A Constituição não reconhece qualquer ‘vida sem valor de vida’, nem garante decisões sobre a própria v ida.» (ibidem, p. 450). 16

Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª ed., cit., p. 365. 17

CRP. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., cit., p. 450.