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II SÉRIE-A — NÚMERO 97

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limitado por uma exigência de proporcionalidade relativa aos bens sacrificados, com uma substancial

relativização dessa exigência contida no trecho final do artigo 337.º do Código Civil23

. Pressupõe a legítima

defesa, todavia, uma situação atual de «ingerência» de natureza qualificada (uma agressão) interferente com

uma situação de incolumidade tutelada pelo Direito, que não origina qualquer paralelo significativo, quanto à

essência do valor vida humana, com a problemática da eutanásia. Não geram, pois, as duas situações,

argumentos válidos de comparação, não pressupondo qualquer identidade de razão, que não assente numa

construção totalmente artificial. Aliás, situando as coisas no plano da adjetivação, a consideração da legítima

defesa projeta-se fundamentalmente em apreciações a posteriori.

2.2.2. Da mesma forma, também não fornecem à opção legislativa subjacente ao Decreto n.º 109/XIV

qualquer argumento de respaldo, referido à justificação da construção de restrições à inviolabilidade da vida

humana nos termos em que esta é afirmada no artigo 24.º, n.º 1 da CRP, situações específicas que

postulem, ou exijam mesmo, escolhas – seguramente dilemáticas – interferentes com o valor vida humana.

A atividade médica, como o tempo presente se encarregou de demonstrar à saciedade, gera situações

desse tipo, e não podemos dizer que o sentido poderoso da afirmação da inviolabilidade da vida humana –

da exaltação do valor desta – esteja, em tais casos especiais, a ser postergado…

«[…]

São decisões muito objetivas. Claro que se tivéssemos recursos ilimitados de cuidados intensivos, se

calhar tínhamos critérios mais amplos de admissão do que numa situação em que há muito menos recursos

do que candidatos. Aí, temos de ser mais selectivos. De qualquer modo, mesmo que tivesse cem camas de

cuidados intensivos livres, e houvesse um doente com imensas dependências, num estado quase terminal

da sua vida, era má prática, era obstinação terapêutica, admiti-lo em cuidados intensivos. Uma coisa é

prolongar a vida, que é o que fazemos. Outra é prolongar a morte. Para um doente que está a chegar ao fim

da vida, um ventilador prolonga-lhe, não a vida, mas a morte. Está numa dependência total. Não morre hoje,

mas morre daqui a 15 dias, totalmente dependente. […]»

[entrevista com o Dr. António Sarmento, Diretor do Serviço de Infeciologia do Hospital de S. João]24

.

…, valendo essa asserção (são compatibilizáveis com o princípio da inviolabilidade da vida humana), para

nos centrarmos na temática que nos ocupa, decisões médicas guiadas pelo princípio do bem-fazer, de não

prolongamento artificial da vida através de terapias fúteis; o encarniçamentoterapêutico, contra toda a

esperança de uma melhoria real da situação do paciente; o respeito pela autonomia deste expressa na

vontade – desde logo através das directivas antecipadas de vontade em matéria de cuidados de saúde,

designadamente sob a forma de testamento vital (cf. artigo 1.º da Lei n.º 25/2012, de 16 de julho) –, de não

ser sujeito a determinadas terapias, ou de determinar a sua suspensão, não obstante serem necessárias ao

prolongar da vida (tais situações projetam o respeito pela autonomia do doente quanto à modelação

decisória dos atos médicos25

a que pretende ser sujeito26

, acomodam até ao limite possível os valores que a

este respeito se impõem ao legislador27

); a adoção de terapias antagonistas da dor e do sofrimento, que

tenham como efeito (secundário, indireto, não visado mas a que não se pode obviar) o encurtar da vida do

paciente, valendo nestes casos a chamada Doutrina do Duplo Efeito, distinguindo entre procurar causar um

resultado desvalioso, e a previsão da ocorrência deste, como eventualidade, quando essa ação é só guiada

23

Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, cit., pp. 511-514, e António Menezes Cordeiro, anotando o artigo 337.º do CC, in Código Civil Comentado, I – Parte Geral (coord. António Menezes Cordeiro), Almedina, Coimbra, 2020, pp. 958-960 e 963-965. 24

E, ainda, com menção à eutanásia: «O que mais o perturba? É que sei que vai morrer gente e a nós médicos custa-nos sempre imenso. Nunca nos habituamos a ver morrer os doentes. Nunca. Nunca. Fomos formatados para a vida. Não para a morte. Ver morrer pessoas é a grande carga de tudo isto. Por muitos anos de médico que tenhamos, nunca nos habituamos. Nunca. E nos cuidados intensivos a taxa de doentes que nos morrem no dia a dia é muito grande. Mas nunca me habituei. Nem nenhum médico se habitua. É por isso que quando se discute a questão da eutanásia, nós não estamos formatados para isso. Estamos formatados para aliviar o sofrimento, prolongar a vida quando é possível prolongar. Quando não é possível, devemos proporcionar uma morte sem sofrimento, ou com o menor sofrimento possível. O que me perturba é os doentes que vão morrer.» Expresso Revista de 27/12/2020, p. 56, https://expresso.pt/coronavirus/2020-12-27-O-coronavirus-esta-a-assustar-mais-do-que-a-sida-a-entrevista-ao-primeiro-vacinado-quando-a-covid-ainda-estava-no-comeco. 25

Cf. artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento n.º 698/2019 da Ordem dos Médicos, que define os atos próprios dos médicos (DR, 2.ª Série, n.º 170, de 5 de setembro de 2019). 26

«A provocação direta da morte nunca poderá ser encarada ou construída como uma ‘opção terapêutica’ para reagir ao sofrimento» (George P. Smith, II, Palliative Care and End-of-Life Decisions, Palgrave Macmillan, Nova York, 2013, p. 23). 27

Ou seja, na relação entre o valor vida e o valor autonomia, não fazem prevalecer a autodeterminação em detrimento da vida, não dando lugar à inversão dos valores constitucionais que o acolhimento da eutanásia necessariamente implica.